Nuno Gomes Garcia conversa com… Joaquim Gonçalves: “Não nos podemos cingir a vender os livros que anunciam na televisão”

Joaquim Gonçalves é um dos raros mestres-livreiros em Portugal. Responsável pela existência de uma livraria de dimensão humana, muito parecida com a nossa própria casa, e em total divergência com os locais onde, por estes dias de consumismo despersonalizado, são vendidos a maioria dos nossos livros: ora nos supermercados ao lado dos detergentes, ora nas FNACs deste mundo, por entre eletrodomésticos e brinquedos.

“A das Artes” – é esse o nome da livraria que faz as delícias de escritores e leitores, e que também se tornou o nome da mais recente editora portuguesa – tem o valor acrescentado de se situar fora dos grandes centros urbanos como o Porto ou Lisboa.

O Joaquim Gonçalves decidiu criá-la, em 2003, na pequena cidade de Sines, entre o Atlântico e o Castelo medieval. E é aí, em Sines, onde ele recebe os clientes-leitores como quem recebe um amigo de infância. E é aí que, leitor insaciável, aconselha apenas os livros que leu, porque o Joaquim só fala do que sabe. E ninguém percebe mais de livros do que o Joaquim Gonçalves. Não admira, portanto, que “A das Artes” fosse eleita a livraria preferida dos Portugueses em 2015 e 2016 numa votação online organizada pela “Associação Portuguesa de Editores e Livreiros”, acumulando o galardão de livraria portuguesa com melhor atendimento em 2014, 15, 16 e 2017.

 

Comecemos pela conversa desagradável. Há anos que te ouço falar do esmagamento que as grandes superfícies comerciais exercem sobre as livrarias independentes, de bairro, como “A das Artes”. Diz-nos em que aspetos se faz sentir esse esmagamento?

Hoje de manhã, fui levar a minha filha de sete anos à escola. Como ela teve pesadelos durante a noite, fez uma grande birra para sair de casa, mas, quando chegámos ao portão da escola, ela já ia calma e serena, pois consegui dar-lhe a volta e chegar até ela. Com as livrarias independentes versus livrarias dos supermercados ou os grandes grupos, nós temos de utilizar a mesma estratégia que utilizei com a minha filha. Teoricamente, os grandes grupos têm a faca e o queijo na mão, visto serem eles que editam, que têm o exclusivo das suas edições, e podem fazer delas o que quiserem. E esses grupos têm, também, cadeias de livrarias e redes de distribuição próprias. Ou seja, eles detêm um império e vendem a quem quiserem e como quiserem. De notar que, enquanto uma livraria independente tem uma margem de cerca de 30%, as grandes redes de distribuição exigem um mínimo de 56%. Portanto, eles podem fazer descontos à vontade que mesmo assim ainda ganham mais do que nós e possivelmente até pagam mais tarde.

 

E, perante essa situação, o que é que pode ser feito para melhorar a situação das livrarias independentes?

Neste momento existe um movimento das livrarias independentes, que existe em França também. No fundo, nós temos de marcar a diferença, fazer outras coisas. Enquanto nos supermercados, os funcionários nem sequer nos sabem aconselhar as melhores cebolas, quanto mais os melhores livros, nas nossas livrarias nós sabemos para que serve o “medicamento” que vendemos, se o livro é bom para o colesterol ou para a tosse. Nós sabemos do que falamos quando pegamos num livro e o colocamos nas mãos do cliente. Para além disso, temos igualmente de diversificar. Em Portugal, pelo menos, não nos podemos cingir a vender os livros que anunciam na televisão, que são, normalmente, os livros que as pessoas que pouco leem, ou têm menor apetência para a leitura, desejam ler.

 

E essas pessoas de que falas são vítimas do marketing e das modas?

Exatamente! Nós, então, temos de desbravar caminhos. Aqui, em Sines desde 2003, e especialmente depois de termos começado a ganhar os prémios – o de “Livraria Preferida dos Portugueses” que referiste antes, mas também o de “Melhor Atendimento”, em quatro anos seguidos, de 2014 a 2017 – começámos a receber várias solicitações de diferentes pontos dos país e, também, do estrangeiro. Nós temos clientes em Paris, em Bruxelas, no Luxemburgo, Berlim, Londres…

 

Os prémios foram importantes até para impulsionar o negócio…

Sim, claro, mas isso dá muito trabalho, e as livrarias independentes se quiserem vingar têm de ter trabalho. Eu trabalho de noite e de dia. Chego a estar recostado na minha cama a falar de livros e a receber encomendas pelo Facebook. Por outro lado, na nossa livraria, nós alterámos o seu aspeto. Criámos uma pequena cafetaria, servimos refeições por reserva, temos uma pequena esplanada na rua. Este ano, começámos a vender, por exemplo, biscoitos e chocolates artesanais biológicos feitos na região.

 

Bem, apesar das dificuldades, “A das Artes”, além de ser o local ideal para comprar livros, porque tu, efetivamente sabes do que falas, também se tornou ponto de passagem obrigatória para os grandes escritores portugueses contemporâneos. Diz-nos alguns dos nomes importantes que passaram por aí.

Ora bem. Temos o exemplo de Nuno Gomes Garcia…

 

Sim, é verdade, já aí fui, e com grande prazer.

Mas há mais. É com grande orgulho que digo que o padrinho da livraria é o Sérgio Godinho. Foi o primeiro grande autor que veio cá, em 2003. Mas já cá tivemos o Mia Couto, Ondjaki, David Machado, Rui Zink, Cristina Carvalho, João Tordo, José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe… bem, é mais fácil dizer quem é que ainda não esteve cá. Tenho outro grande orgulho em cá ter recebido o recentemente desaparecido Zé Pedro, guitarrista dos Xutos&Pontapés. Já cá foi lançado um disco dos Peste&Sida. Para além de dança contemporânea, teatro, música e ainda, muitas sessões de contos para crianças.

 

Não só escritores, mas também músicos e outros artistas.

Orgulho-me também de poder dizer que grandes autores, hoje, nos solicitam a sua presença na livraria. Os grandes autores portugueses da geração que hoje tem 40 anos, relativamente jovens, portanto, reconhecem publicamente que querem cá vir porque quando eram desconhecidos fui eu que os empurrei para a frente, que divulguei a sua obra em meio de certa forma adverso. Não é imodéstia da minha parte, é a realidade. Hoje, por exemplo, o João Pinto Coelho, o mais recente vencedor do Prémio Leya…

 

Que esteve aqui connosco há três semanas.

É verdade! Ele, numa entrevista, disse que escolheu a profissão de livreiro de um dos seus personagens em homenagem à minha pessoa.

 

Uma enorme homenagem do João, que é uma pessoa fantástica. Joaquim, antes de terminarmos, gostaria que nos aconselhasses um livro.

Neste momento, o livro que eu aconselho é “Os loucos da rua Mazur” do João Pinto Coelho. Eu acho que deveria ser obrigatório no currículo escolar para que os jovens tivessem uma mínima ideia sobre o que significou o Holocausto. Assim, o mundo seria um melhor lugar para viver.

 

Entrevista realizado no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa

Próximo convidado:

Miguel Miranda autor do romance “Sem Coração”, publicado pela Porto Editora, em 2015, e lançado, em 2016, em França com o título “La disparition du coeur des symboles”.

Quarta-feira, 07 de janeiro, 8h30

Domingo, 11 de fevereiro, 14h25