Opinião: Beleza para uso interno (ou como sobreviver na literatura com batom vermelho e meias de renda)


Uma meditação ansiosamente feminista sobre espelhos, escrita e outras armadilhas do patriarcado disfarçadas de crítica literária.

Já escrevi sobre este tema, mas desta vez não é sobre estatísticas, é sobre obsessões persistentes que pesam sobre a escrita no feminino.

Há um rumor que nos persegue desde que Eva mordeu a maçã, ou talvez desde antes, quando Lilith ousou dizer não. Um murmúrio subterrâneo, ancestral, feito de olhares enviesados e elogios com cheiro a sentença. Dizem-nos, com palavras doces ou silêncios imensos, que há um lugar para a mulher e que esse lugar é sempre ao lado, nunca ao centro.

Na literatura, como na vida, as mulheres são instadas a justificar a própria existência com mais zelo do que os homens justificam as suas palavras. A um escritor basta-lhe nascer, basta-lhe ser um Hemingway de barba cerrada, um Kafka febril, um Pessoa melancólico e multiplicado. À escritora exige-se não só talento, mas também recato, graça, alguma beleza (mas não demasiada) e, sobretudo, o pudor de não gritar a dor. Virginia Woolf reclamava “um quarto que fosse só seu”, e ainda hoje muitas escrevem da cozinha, entre panelas e chamadas não atendidas.

A voz feminina na literatura é muitas vezes recebida com um desdém subtil, disfarçado de crítica objectiva. O que neles é coragem, nelas é descontrolo. O que nos homens é transgressão criativa, nas mulheres é vício ou neurose. Simone de Beauvoir não exagerava quando escreveu: “Não se nasce mulher: torna-se”. Mas nunca nos disseram que esse tornar-se seria tão cheio de armadilhas, espelhos deformantes, exigências contraditórias.

Na sociedade mediterrânica, onde a sombra do machismo dança entre oliveiras e sorrisos de conveniência, a mulher é mãe, santa ou louca. Às vezes, tudo ao mesmo tempo. E, se ousa escrever e escrever bem, perguntam-lhe se não terá um marido negligente ou um vazio por preencher. O talento feminino nunca é apenas talento: é uma tentativa de afirmação, uma defesa, uma doença a diagnosticar.

“Para quem nos pomos bonitas?”, perguntamo-nos ao espelho, mesmo quando dizemos que o fazemos para nós. Mas há sempre uma voz, herdada, que insinua: “Sê bela, se quiseres ser amada”. É a voz da cultura, da tradição, da publicidade e até de algumas páginas de Camus. Mesmo Clarice Lispector, que escrevia com um incêndio nos dedos, foi tantas vezes lida como “misteriosa”, como se não compreendê-la fosse uma falha sua e não do leitor.

Somos treinadas a ser para o outro. A escrever para o olhar alheio. A amar para ser amadas. A existir como reflexo. Não espanta que, tantas vezes, o que começa como vocação vire súplica. A arte feminina é, muitas vezes, uma elegia por uma liberdade nunca plenamente conquistada.

E onde ficamos nós, que não queremos escolher entre a musa e a feiticeira, entre a histérica e a resignada? A resposta, talvez, esteja em continuar a escrever, mesmo quando nos dizem que estamos a exagerar. Em continuar a pintar os lábios de vermelho não para seduzir, mas como quem empunha uma espada. Em sermos nossas, antes de sermos de alguém.

Nietzsche dizia que “a serpente que não pode mudar de pele morre”. Talvez escrever, para a mulher, seja isso: mudar de pele diante de um mundo que insiste em não mudar. Porque, no fundo, o que a voz popular não entende é que ser mulher e ser escritora é também ser resistente. É ter dentro de si uma revolução quieta, pronta a explodir em cada palavra.

E, no entanto, por mais que resistamos, há sempre um tribunal invisível diante do qual somos chamadas a depor. A mulher que escreve está sob constante avaliação: não do seu texto, mas do seu tom. É demasiado emocional? Demasiado agressiva? Fria? Impessoal? Por que não fala mais de amor? Ou por que insiste tanto nele? Em Kafka, a alienação é um conceito filosófico; em Sylvia Plath, é patologia.

Ao homem concede-se o benefício da dúvida: ao génio torturado, ao romancista bêbedo, ao filósofo misógino. Mas a mulher não pode apenas criar. Deve justificar a criação. E sorrir. E parecer equilibrada. A histeria, essa invenção médica para silenciar o feminino – ainda paira, disfarçada, entre as críticas literárias e os comentários de rodapé. Freud, que tanto influenciou o século, perguntou-se o que quer a mulher, sem jamais suspeitar que a resposta fosse tão simples quanto a liberdade.

Mas liberdade implica risco, e risco não é atributo que a sociedade tolere facilmente numa mulher. Que mulher ousa escrever sem se desculpar? Que mulher ousa viver sem pedir licença? Claramente, não se trata apenas de literatura. O preconceito literário é só o reflexo mais polido do preconceito social. Nas ruas estreitas do Mediterrâneo, onde o sol é generoso mas a moral ainda é apertada, uma mulher que pensa demasiado é ainda vista como uma ameaça ao equilíbrio social.

Clichés são muros baixos o suficiente para os distraídos saltarem com segurança. Por isso, o imaginário popular prefere as personagens femininas planas: a boa mãe, a jovem sedutora, a velha amargurada. Tudo o que escapa a esse molde ameaça. A escritora que ousa falar de sexo é promíscua. A que fala de maternidade com ambivalência é ingrata. A que não quer filhos é egoísta. A que não fala de nada disso é fria. A liberdade feminina, como escreveu Audre Lorde, “nunca foi gratuita”.

E há ainda o corpo. Esse corpo que se torna texto mesmo quando a autora escreve sobre geologia. Porque o corpo da mulher entra pela página dentro. Não se permite que seja neutro. Ao homem basta-lhe existir. À mulher exige-se que explique ou apague a própria carne. Porque escrever com útero é indecente. Porque desejar no feminino é indecoroso. Porque o prazer, na mulher, ainda é um problema narrativo. A mulher que escreve sobre sexo e sentimento é uma porta aberta para ofertas várias; o homem é um poeta!

Pelo preço do livro, compram a vida da autora, decidem sobre ela!

O que neles é virtude, nelas é vício.

Mas não se trata de queixume, trata-se de lucidez. A lucidez da mulher que sabe que cada linha que escreve é, também, uma afronta. E que, mesmo assim, escreve. Porque entre o silêncio e a escrita, a escolha não é estética: é vital. Porque há uma urgência, não por vaidade, mas por existência.

No fundo, talvez seja isso que nos une: a busca de uma linguagem que não nos traia. Uma voz que não precise de disfarces, nem de desculpas. Uma literatura que não seja apenas resposta, mas provocação. Como disse Marguerite Duras, “escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído”. E nós temos gritado muito.

Para quem escreve a escritora? Talvez para si mesma, num primeiro momento, mas sempre sob o olhar do Outro. Escreve, talvez, como quem se tenta ver num espelho sem moldura. Escreve contra os ecos que a querem encaixar, contra os modelos que a querem docemente desaparecer. Escreve como acto de resistência.

E se perguntarmos, no fim: para quem nos pomos bonitas? Para quem escrevemos? A resposta talvez não esteja nos olhos que nos observam, mas na consciência de que somos também criadoras do nosso próprio olhar, e que é ele a fonte da nossa criação. Não é vaidade. É gesto. É poder. É linguagem.

E linguagem, essa sim, é território de batalha, mas também de libertação.

.

Nota de rodapé:

E talvez! Digo talvez, porque isto não se aplica a todas, num rasgo de vulnerabilidade, alguma confesse, numa voz trémula, tal como Galileu Galilei murmurou teimosamente, já com um pé na fogueira: e pur si muove. Talvez alguma mulher também confesse, entre o sono e o sonho, com um pé na fogueira e outro na secreta inspiração, que sim, que tendes razão: há sempre um homem que quer impressionar quando escreve.

.

Cristina Branco

Escritora