Opinião: Desesperadamente perfeitas_LusoJornal·Opinião·15 Maio, 2025 Dizem que as mulheres são frágeis. Mas convém que saibam carregar frigoríficos, desmontar móveis e pintar a casa com a mesma destreza com que aplicam o eyeliner: precisão cirúrgica e um leve franzir de sobrolho que disfarça as dores nas costas e as noites mal dormidas. São complexadas, emotivas, instáveis, dizem, de preferência num tom paternalista, enquanto lhes penduram nos ombros a responsabilidade de sustentar uma casa, criar filhos, segurar famílias inteiras e, se houver tempo, salvar o planeta. Tudo isto com leveza, como se não custasse. Como se fosse vocação. A isso chama-se multitasking, a maquilhagem moderna da sobrecarga. Desde cedo se lhes ensina que devem ser bonitas (mas não demasiado, para não “provocar”); caladas (mas com opinião, senão são desinteressantes); discretas (mas sensuais); femininas (mas não frágeis); fortes (mas não brutas); dedicadas (mas não dependentes); modernas (mas não devassas). Em suma: perfeitas, contidas, ajustadas. Como pedem os franceses: “le beurre, l’argent du beurre et le cul de la crémière”. Ou, numa versão menos grosseira e mais bucólica: sol no eirado e chuva no prado. Ao mesmo tempo. Ser mulher hoje, aliás, sempre, é um número de equilibrismo digno do Cirque du Soleil, mas com sapatos de salto, quatro filhos ao colo e um relatório para entregar até às 18h00. A psicanálise bem tentou ajudar. Freud, que passou a vida a perguntar-se “o que quer a mulher?”, esqueceu-se de questionar: o que querem dela? Provavelmente, tudo. Menos barulho. Se pensa que exageramos, ligue a televisão. A suburbana perfeição das “Desperate Housewives” talvez o convença. Quatro mulheres, quatro casas de jardim aparado e vidas discretamente desfeitas. Sob o verniz da compostura, escondem-se adultérios, vícios de comprimidos, solidão domesticada. Como diz Mary Alice Young, do alto da sua voz post-mortem: “Yes, life is a journey full of surprises. And as it turns out, the women of Wisteria Lane had just begun theirs”. Mas não se iluda. Estas mulheres não são ficção. São espelho. Tal como as Amélies contemporâneas que não vivem em Montmartre, mas em Sacavém, Lousada ou Braga, que acumulam turnos, cuidam de sogros, fazem lanches escolares e ainda sorriem para não parecerem ingratas. Porque, afinal, “têm saúde”. Agora imagine que é maio. O mês das flores. Da Virgem. E, claro, o mês da Mãe. O que pedimos às mães? O mesmo que pedimos às mulheres, mas com mais doçura: que sejam eternas. Eternamente disponíveis, compreensivas, jovens. No Dia da Mãe, oferecem-se canecas com corações e frases feitas, “melhor mãe do mundo”, ignorando que ela não dorme bem há décadas e ainda tem de sorrir para fingir entusiasmo. Se for “mãe solteira”, o “prémio” vem com juros. Em Portugal, 86,4% das famílias monoparentais têm uma mulher como única adulta responsável. Em França, são 84%. Muitas não escolheram essa condição. Após a separação, relatam as estatísticas oficiais que cerca de 46% dos pais portugueses não cumprem regularmente a pensão de alimentos. Em França, cerca de 30% das mães não recebem qualquer apoio financeiro do pai da criança. A isto chama-se abandono económico. Mas trata-se o tema com a mesma leveza burocrática de uma multa de estacionamento. Quem paga? Elas. Sempre elas. E quem paga o preço maior? As crianças. Estudos europeus mostram que as crianças de famílias monoparentais estão em maior risco de pobreza e exclusão social. Em Portugal, mais de 41% destas famílias vivem abaixo do limiar de pobreza. Em França, 33% das famílias monoparentais estão em situação de pobreza. Esta precariedade afeta diretamente o desempenho escolar, o acesso a cuidados de saúde e a estabilidade emocional dos filhos. O ciclo repete-se. A desigualdade herda-se. Mas voltemos às mães. Segundo a OCDE, as mulheres continuam a realizar, em média, o dobro do trabalho doméstico em comparação com os homens, mesmo quando trabalham o mesmo número de horas fora de casa. E se ousam reclamar? São histéricas. A palavra vem de “útero”, curiosamente. Até a etimologia parece querer calá-las. Hollywood tentou romantizar esta carga. Em Little Miss Sunshine, a avó diz: “A real loser is someone who’s so afraid of not winning he doesn’t even try”. Ser mulher é tentar. Sempre. Mesmo quando o jogo está viciado. Mesmo quando o prémio é apenas o privilégio de continuar a jogar. Na Paris encantada de “Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain”, Amélie muda vidas com gestos pequenos. Nas cidades reais, as Amélies mudam fraldas, renegociam dívidas, agendam consultas e sorriem, porque deviam estar gratas. A ironia maior? O marketing vende a mulher contemporânea como empoderada. Como se empoderamento fosse o mesmo que exaustão bem embalada. Como se ser “chef de logística emocional” fosse um título de prestígio, e não um fardo solitário. A sabedoria popular ainda tenta ajudar: “Atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher”. Mas ninguém diz que ela está atrás porque carrega o carrinho de bebé, segura o guarda-chuva e ainda prepara o discurso dele. Haverá sempre alguém a dizer: “Eu faço isso tudo com um sorriso!” E as que não conseguem? Fracas. Preguiçosas. Ingratas. E assim se perpetua o modelo da “Desperate Housewife” pós-moderna: bonita, funcional, resiliente, emocionalmente madura, produtiva, ecológica, disponível, depilada. A mulher ideal: uma colagem de exigências alheias, sem tempo para saber o que quer de si própria. Não se trata de lamúria. Nem de moralismo. Trata-se de lucidez. E talvez, de ironia, porque se não rirmos, choramos. Mas com moderação. Que é para não se notar depois da maquilhagem. Como diria Mary Alice Young, do fundo do seu túmulo florido: “I died as I had lived: as the desperate housewife I had always been”. Mas isso são as fracas. As fortes? Essas continuam a esconder cadáveres de cansaços existenciais nos armários da vida. Afinal, é maio. E ninguém quer decepcionar no Dia da Mãe..Cristina Branco