Opinião: O meu pai esquivou-se à guerra colonial…Cristina Branco·Opinião·8 Maio, 2025 O meu pai esquivou-se à guerra colonial, por sorte, ou talvez por uma intuição profética que o levou a emigrar legalmente antes de ser chamado a servir num conflito que não era seu. Um gesto pleno de coragem silenciosa. Partiu antes que a ordem chegasse, antes que o destino o empurrasse para as matas sufocantes de Angola ou os trilhos ensanguentados da Guiné. Partiu para viver, não para matar. Cada homem carrega dentro de si uma narrativa única, feita de hesitações, escolhas e silêncios. A do meu pai começa com a presença longínqua de um tio que já habitava a terra prometida – a França – muito antes da grande diáspora que empurrou, quase sem remédio, milhares de jovens a “passar a salto”, atravessando montes e fronteiras em busca de um futuro onde a morte não fosse um dever de Estado. O meu pai não era doutor, engenheiro nem filho de senhoras de colar de pérolas. Era um homem do povo, trabalhador, sem privilégios, mas com uma bússola moral afinada pelo bom senso e pela humanidade. Sabia que a guerra colonial era uma guerra suja, uma teimosia imperial travestida de missão civilizadora. Não concordava com a ocupação dos territórios africanos, e dizia-o com a voz firme de quem não precisa de armas para se afirmar. Essa recusa valeu-lhe o rótulo fácil e injusto de covarde. Não quis matar, e por isso foi julgado. Como escreveu António Lobo Antunes, ele próprio médico destacado em Angola durante a guerra: “Fomos para África defender uma coisa que não sabíamos o que era, numa terra que não nos queria, contra um povo que não conhecíamos”. O meu pai sabia disso antes mesmo de o viver. E recusou-se a participar nessa ilusão, nesse teatro cruel montado por um império em ruínas. Pagou, sim. Não apenas em dinheiro, mas em saudade, em cansaço, em jornadas de trabalho longas sob o céu cinzento da França. Pagou com o silêncio das fotografias enviadas por correio, com os natais passados longe e a voz embargada nas chamadas caras e curtas. Pagou como tantos outros, com dignidade. António Lobo Antunes escreveu ainda: “Não sei o que nos ficou da guerra. Talvez um certo modo de olhar, uma ferida sem sangue no fundo dos olhos”. E mesmo não tendo combatido, o meu pai carregava esse olhar, o peso de ter sido espectador e, simultaneamente, protagonista de uma fuga honesta. A dor da guerra não é monopólio de quem combate. Há dores que se vivem à margem do campo de batalha , na solidão dos que partiram, na culpa dos que escaparam, no respeito profundo por aqueles que tombaram. O meu pai nunca ignorou os que lutaram, nem os que morreram. A sua consciência era ampla e sem fronteiras. Ensinou-me que a solidariedade não nasce apenas da experiência direta do sofrimento, mas da capacidade de o reconhecer no outro. Transmitiu, com os gestos simples de todos os dias, os valores que realmente importam: a liberdade, o humanismo, o respeito pelo outro. A coragem de dizer não quando o mundo inteiro espera que digas sim. E essa, talvez, seja a mais rara e preciosa das valentias. . Cristina Branco