Reitor Nuno Aurélio Fatima

Opinião: Os desesperados

No dia 20 de fevereiro cumprem-se 100 anos da morte de Santa Jacinta Marto, uma das videntes de Nossa Senhora em Fátima. Morreu aos 10 anos, em 20 de fevereiro de 1920, vítima da pneumónica ou gripe espanhola, que na época vitimou milhões de pessoas. Passou 18 dias sozinha no hospital pediátrico de D. Estefânia, em Lisboa, onde terá morrido sem a companhia da família ou de amigos. Sofreu muito fisicamente, mas sabemos que nunca desesperou, que aceitou e abraçou o sofrimento como parte da vida, com lucidez e confiança e, por isso, com grande coragem. Tinha apenas 10 anos.

No mesmo dia, os 230 Deputados da Assembleia da República debaterão durante 157 minutos a despenalização da eutanásia. Qualquer outro problema e necessidade humana exigem mais tempo aos nossos Deputados. Convém recordar que os dois maiores Partidos da nossa Democracia, PS e PSD, nunca disseram uma única palavra nem incluíram o assunto nos seus programas eleitorais para as eleições de outubro passado, quando se apresentaram ao povo. A falta de honestidade dos Partidos políticos que prometem uma coisa e fazem outra ou que nada nos dizem, antes dum ato eleitoral, e fazem a surpresa de decidirem o que bem entendem, provoca o seu descrédito. Não admira que o povo acredite e confie cada vez menos nos políticos. Eu incluído. E por isso a abstenção não para de aumentar.

Como tudo que toca a vida na sua essência, o assunto não é fácil. E o espaço que aqui tenho é pouco para tão grande complexidade. Por eutanásia, deve entender-se uma ação, ou a falta dela que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento. A ela se pode equiparar o suicídio assistido, isto é, o ato pelo qual não se causa diretamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha termo à sua própria vida. Podemos dizer que na base da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, como de outras questões que tocam a essencialidade da vida, está a pretensão de redefinir o progresso da consciência ética e jurídica, antigas e aceites, relativas ao respeito e à sacralidade da vida humana.

Pretende-se que o mandamento divino, que a lei humana adotou, de que nunca é lícito matar uma pessoa humana inocente (“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar quando o visado quer viver. Ou seja, pretende-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e porque dotada de dignidade em qualquer circunstância, seja substituída por um outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana podem variar e podem perder-se.

Ora, numa conceção humanista, isto é inaceitável. Para um crente, esta certeza é mais clara e evidente. Mas não é uma questão religiosa ou confessional, é racional e natural. A Constituição Portuguesa – de marca «republicana, laica e socialista» – reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (artigo 24º, nº 1). Porque a vida humana é o pressuposto de todos os direitos, deveres e de todos os bens terrenos, materiais e imateriais. É também o pressuposto da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana não cessa com o consentimento do seu titular. O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana: eu não sou dono de mim mesmo, como não sou dono de ninguém. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde, ou a venda de si mesmo, dos seus órgãos corporais ou dos filhos, por exemplo.

No entanto, uma nova moral, chamada da autonomia, desenvolveu-se para afirmar que a vida humana só é digna e válida, se a pessoa humana pode dispor dela inteira e totalmente, se nunca for dependente de outro para se manter e desenvolver e, por isso, estar em boas condições físicas, emocionais e psíquicas para se realizar.

Ora esta visão do humano é redutor e profundamente funcionalista: o valor e dignidade da vida humana dependem, em última análise, do seu desempenho. Em nome da autonomia, os que defendem a legalização da eutanásia e do suicídio assistido atentam contra o princípio de que a vida humana tem sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das suas condições externas. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade própria da pessoa humana e passa a variar em grau e a depender de alguma dessas condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não merece proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder dignidade.

Invocam os partidários da legalização da eutanásia e do suicídio assistido que, com essa legalização, se respeita, apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte, de quem solicita tais pedidos, sem tomar partido. Não é bem assim.

Quando um doente pede para morrer porque acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou porque lhe parece que é um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o Estado devem dar a esse pedido não pode ser: “Sim, a tua vida não tem sentido, a tua vida perdeu dignidade, és um peso para os outros”. Porque isso é tomar partido. Mas a resposta deve e pode ser outra: “Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade, tem valor até ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor sem medida para todos nós”. Esta é a resposta duma comunidade que coloca todas as suas energias ao serviço dos doentes mais vulneráveis e sofredores, dos pobres e sozinhos e, por isso, mais necessitados de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista, falsamente humanista e anti-humana, de quem não pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira qualidade de vida do próximo e embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.

Não se elimina o sofrimento com a morte, nem se acaba com a pobreza eliminando os pobres: com a morte elimina-se a vida da pessoa! O sofrimento pode ser eliminado ou diminuído com os cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as técnicas analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável. Desta forma, pode afirmar-se que a eutanásia é uma forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente através da medicina paliativa e do amor concreto para com quem sofre. Só não há comprimidos para o desespero e falta de sentido na vida.

Como afirmou o Papa Bento XVI, “a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre”.

Que sociedade queremos ser: de corações ‘grandes’ ou ‘pequeninos’? De homens e mulheres verdadeiramente humanos e solidários ou de desistentes, desiludidos e desesperados?

 

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