A “origem da língua crioula” segundo um estudioso guineense, e o crioulo que teve origem nas ilhas de Cabo Verde

  1. “Embuste” caboverdeano?!

Li, curioso e interessado, duas crónicas de Livonildo Francisco Mendes, a primeira sobre “A descoberta de Cabo Verde e o surgimento dos ‘caboverdianos”, a segunda sobre a “Origem da língua crioula falada na Guiné-Bissau e em Cabo Verde ”.

Por agora pego na segunda. O Dr Mendes, “sociólogo-politicólogo africano/guineense” com obras publicadas, despertou a minha curiosidade ao assumir “a responsabilidade de desconstruir a ‘narrativa’ sobre o crioulo” (refutando assim os estudos que dão o Crioulo como originário das ilhas de Cabo Verde).

Gosto de aprender com quem sabe, mas neste caso fiquei mais perplexo que esclarecido! O Crioulo é uma temática muito séria para ser tratada de ânimo leve, e certas afirmações demandam, a meu ver, mais cuidada verificação documental. Era de esperar um estudo com fundamento em fontes, factos e evidências credíveis que, pelos vistos, faltaram ao ilustre “sociólogo-politicólogo africano/guineense” ao “atacar em diagonal para descodificar os possíveis ‘embustes” e evitar aos incautos “comprar gato por lebre”.

Por “embuste”, subentende-se andarem os Caboverdeanos a reivindicar um património que não é deles, que não inventaram língua nenhuma, já que foi da Guiné que lhes chegou o crioulo!

Ora ainda que assim fosse, não é com cruzadas patrióticas que se “descodifica” a história! Não é numa antinomia telúrica Guiné/Cabo Verde que vamos investigar a paternidade do Crioulo que comungamos, mutatis mutandis, no continente e nas ilhas. Muito menos com ideias preconcebidas, mal dissimuladas nas entrelinhas do que li, fazendo passar os caboverdeanos por uma nação degenerada, de escravos guineenses assimilados em contacto com os europeus!

Então seja permitido a este vosso humilde servidor, investigador diletante da história dos nossos países e povos, “descodificar” – também – alguns sofismas. E pouco importa aqui se sou caboverdeano, africano das ilhas – fosse guineense de nascença, contaria a mesma “história”! Se acredito que a língua crioula nasceu nas ilhas de Santiago e Fogo, não é por nacionalismo compulsivo – é porque factos e evidências dificilmente contestáveis da nossa história comum apontam nessa direção.

 

  1. “Descodificando” a história do povoamento

Foram, lembra o Dr Mendes, “os escravos guineenses que deram origem à atual população de Cabo Verde”. Afirmativo – porém demasiado simplista por falta de um simples advérbio! “Descodificando”: os primeiros escravos, essencialmente da atual Guiné-Bissau, provieram de diferentes regiões. Por carta régia de 1466, D. Afonso V autorizava aos primeiros colonos os “tratos e resgates” num perímetro costeiro que se estendia da Senegâmbia até à Serra-Leoa (da Senegâmbia vieram, por exemplo, os Jalofos…)

Ainda “descodificando”, como diz o Outro, os africanos não eram todos escravos, havendo entre eles homens livres (e porventura mulheres… como a jovem Brízida, filha de Beca Caia que era o chefe de uma etnia Sape da Serra-Leoa. Consta que veio estudar para Santiago e por cá ficou).

O Dr Mendes sabe que não vieram unicamente africanos povoar as ilhas, ou não fossem elas a primeira nação nascida da coabitação entre africanos e europeus nos trópicos! Os caboverdeanos, nação mestiça de matriz africana, fizeram a síntese das suas diferenças irmanando-as no sangue e na cultura. E não têm mea culpa a fazer por terem criado uma cultura própria! O crioulo, nascido nas ilhas de Santiago e Fogo, exprime e veicula essa cultura, gerada por povos de díspares origens e feitios.

Curiosamente o Dr Mendes só menciona os escravos, “esquecendo” que uma língua crioula é gerada – como uma criança – por, pelo menos, dois progenitores, dois idiomas! Línguas crioulas emanam de populações “crioulizadas”, passe a expressão, e não de simples feitorias ou colonatos temporários! Senão, vejamos: os portugueses também tinham feitorias em Angola e Moçambique, mas crioulo undi ki fica? Fundaram importantes entrepostos no Golfo da Guiné (como São Jorge da Mina em 1484) mas, curiosamente, foi em S. Tomé-e-Príncipe – outro arquipélago povoado por africanos e portugueses – que se formou um crioulo de base lexical portuguesa!

O forro, crioulo são-tomense (como o angolar, menos falado), tem como substrato africano os falares dos povos do delta do Níger, não se confundindo com o crioulo de Cabo Verde.

Desde o século XV, a ladinização dos escravos (baptismo e aprendizagem da língua dos colonos) mudou o rosto da sociedade caboverdeana, se calhar mais do que em outras partes do Império. Por efeito de um acelerado processo de miscigenação, os filhos da terra, mestiços, foram herdando dos seus progenitores, os brancos da terra. Escravos alforriados investiram a sociedade livre como rendeiros, negociantes, marinheiros, profissionais liberais… Em 1522 já havia uma vintena de padres mestiços e negros na Ribeira-Grande. O padre António Vieira, célebre jesuíta de passagem em 1652, lavrou rasgados elogios à intenção dos cónegos negros que encontrou na então capital do arquipélago, tão instruídos e doutos que “fariam inveja nas nossas catedrais”!

Das agruras da servitude emerge esta realidade caboverdeana que a muitos incomoda reconhecer: muitos escravos encontraram na sociedade emergente e na Igreja, oportunidades que os seus irmãos do continente lhes negaram, vendendo-os que nem alimárias a estrangeiros!

 

  1. É pouco provável que o crioulo tenha nascido no continente!

Diz (acha) o Dr Mendes que “na Guiné-Bissau, a língua crioula resulta de contactos (…) entre os portugueses e os povos do Golfo da Guiné (principalmente os Mandingas e os Fulas) desde a época do Grande-Império do Mali, no século XIII” (Deveras espantoso! Mandingas e Fulas no Golfo da Guiné! E portugueses, no século XIII!)

Numa coisa calha bem esta referência “imperial”: como outras civilizações africanas, o grande império malinké (ou do Mali) deveria deitar por terra o estereótipo de uma África “sem história”, por ignorância ou preconceito. Reduzir a história africana à colonização, é uma presunção euro-centrífuga que infelizmente ainda impera em muitas mentes colonizadas! Certo presidente francês declarou em Dakar que o homem africano perdeu o comboio da história! Fez-lhe falta um bom conselheiro para lhe lembrar que estava nas terras do antigo império Wolof, e que o império do Mali precede de dois séculos a chegada dos portugueses!

Mas vamos ao que nos interessa, que é onde e quando nasceu o Crioulo! No século XIII não podia ser, já que os portugueses só chegaram à África no século XV! É em 1434 que Gil Eanes passa o enigmático cabo Bojador. Dez anos mais tarde, navegando à vista com o deserto a bombordo, Dinis Dias e Lançarote avistam a embocadura do rio Senegal e o promontório a que chamam cabo Verde. Os portugueses não se aventuraram muito terras adentro, deixando-se ficar pela orla marítima ou fluvial com seus entrepostos e feitorias. Nos primeiros tempos enviavam emissários e socorriam-se de intérpretes africanos a quem chamavam “línguas”.

Não há notícia de povos Mandingas e Fulas no Golfo da Guiné, por isso não foi no Golfo que viram chegar os portugueses, mas sim na costa ocidental (Senegâmbia/Rios da Guiné). Aliás, que nos diz história? Diz que o império (mandinga) do Mali, no seu apogeu, estendia-se em latitude através da cintura do Sahel até à Senegâmbia marítima, com epicentro no Alto-Niger. Nenhuma cartografia o apresenta como um território litorâneo por definição, e nunca se propagou até ao Golfo da Guiné (a menos que o articulista tenha confundido, por descuido, Golfo com Costa… da Guiné)!

Nos finais do século XVI o império do Mali foi-se desagregando em pequenos reinos, sendo o principal o Gabu (leste da Guiné-Bissau) onde os Mandingas se tinham fixado desde o século XIII. Mandingas e Fulas, vivendo mais para o interior (no planalto do Gabu, de resto ainda hoje), negociavam com os portugueses que os demandavam a partir das suas feitorias e portos. O mesmo acontecia com as outras etnias.

 

  1. Como se formou o crioulo nas ilhas de Santiago e Fogo

Diz o Dr Mendes que “o crioulo foi desenvolvido pelo contacto entre os portugueses e povos do Golfo da Guiné (…) ainda antes da chegada ‘oficial’ de Portugal ao território da actual Guiné-Bissau, sendo depois levado para as ilhas de Cabo Verde pelos escravos guineenses”… mas eis que de seguida contradiz-se: – “foram os escravos guineenses que deram origem à atual população de Cabo Verde e, por consequência, ao crioulo”.

Não disse onde, mas subentende-se: em Cabo Verde! Aliás é pouco provável que o crioulo tivesse sido gerado no continente! Menos provável ainda, portugueses falando crioulo no Golfo da Guiné quando ainda nem tinham avistado o rio Cacheu! A hipótese de alegado “contacto entre os portugueses e povos do Golfo da Guiné (…) ainda antes da chegada ‘oficial’ de Portugal ao território da atual Guiné-Bissau” é um absurdo, porquanto os portugueses aportaram à atual Guiné-Bissau (em 1446) bem antes de dobrarem o cabo das Palmas e navegarem no Golfo da Guiné (em 1471). Estranho seria o percurso inverso, tendo em conta a geografia peri-africana e a rota norte-sul das caravelas.

Assim sendo, convinha “descodificar”, para quem não sabe, este mistério: como é que o crioulo foi obra dos povos do Golfo à conversa com os portugueses, “sendo depois levado para as ilhas de Cabo Verde pelos escravos guineenses”! Como explicar um tal prodígio?

Admitindo que fosse nos Rios da Guiné, negociar não é conviver! As naus portuguesas (como, mais tarde, os galiões espanhóis, os navios franceses, ingleses e holandeses) não se atardavam nos portos mais do que o tempo de descarregar e embarcar mercadorias (sobretudo os escravos ao que vinham), e toca a desfraldar velas! Assim terá sido até ao século XIX. António Carreira, autor de prolíficos estudos sobre a costa africana e Cabo Verde, escreveu: – “A permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária – quando não fugaz”. Daí a ausência de “relações susceptíveis de dar lugar à formação de uma língua”, conclui o conceituado historiador caboverdeano.

Ainda “descodificando”, o crioulo não foi “levado para as ilhas de Cabo Verde pelos escravos guineenses”! Os escravos chegaram com as suas línguas de origem, contribuindo estas para a emergência do crioulo. Carreira confirma o “evidente domínio das línguas Mandinga e Fula”, do ponto de vista lexical e fonológico, mas acha que a simbiose não podia ter-se produzido no continente. Assaz pertinente, esta reflexão: em que momento as populações africanas e os portugueses puderam comunicar duravelmente (e não apenas para negócios esporádicos) a ponto de adotarem uma linguagem comum? Em que lugar podia ter ocorrido essa síntese, a não ser num espaço de coabitação permanente?

Na ilha de Santiago, ora essa! Santiago, ilha-berço de Cabo Verde, povoada essencialmente por escravos trazidos dos Rios da Guiné. Foi nas ilhas de Santiago e Fogo que, pela primeira vez, os dialetos africanos foram levados a comunicar – socialmente, entenda-se – com a língua portuguesa, daí resultando um idioma intermédio: o crioulo.

 

  1. Epílogo: o crioulo na Guiné e no seio da diáspora caboverdeana

Através das migrações e dos negócios (e sem dúvida da ação missionária), o crioulo seria levado para a Casamansa e a Guiné “portuguesa”, evoluindo como uma espécie de língua franca nas trocas comerciais. Eram conhecidos nessas lides os “lançados”, na maioria cristãos-novos, perseguidos por contrabando de “mercadorias defesas” (cujo exclusivo era reservado à Coroa) e por negociarem com potências estrangeiras. Não obstante as severas penas em que incorriam tais “crimes” (traição, concorrência ilegal, e ainda “crime” de heresia), “lançados” houve que ficaram ricos. Como Bibiana Vaz, riquíssima proprietária e negociante de Cacheu, que em 1684-85 liderou um movimento de comerciantes contra a Companhia do Estanco do Maranhão e Pará (luso-brasileira) pelo direito ao free trade com os ingleses (Bibiana Vaz foi trazida para Santiago e metida na cadeia juntamente com outros co-acusados).

Mas acredito que ninguém é dono da verdade, muito menos da verdade histórica! O mais arguto dos investigadores é também o mais prudente e o mais humilde, sobretudo quando “ataca” fenómenos societais cujas raízes se perdem no tempo e nas “brumas da memória”. Não sejamos, pois, categóricos: e se a nossa língua crioula tivesse sido gerada na Guiné e em Cabo Verde, simultaneamente?

A verdade é que o crioulo é hoje, por assim dizer, um idioma internacional! Os caboverdeanos, ao emigrarem, levaram-no pelo mundo, e a nossa música fez o resto – mas isso, já é outra história…

 

Fontes (entre outras):

– Christiano de Sena Barcelos, Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné

– António Carreira, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata, 1983 (mapa)

– A Guiné e as ilhas de Cabo Verde, PAIGC, ed Afrontamento, 1974

– Atlas des civilisations africaines, ed Fernand Natthan, 1983

– Frei Frederico Cerrone, História da Igreja de Cabo Verde, ed G. do Mindelo, 1983