«Na sombra do ipê», de Mazé Torquato Chotil – Episódios de uma vida entre o Mato Grosso do Sul e Paris

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É através deste bonito título, “Na sombra do ipê” (ipê: árvore muito conhecida no Brasil pela beleza de suas flores amarelas, brancas ou róseas) que Mazé Torquato Chotil nos revela alguns episódios de sua existência dilacerada entre “dois mundos com realidades diferentes”: o de sua infância no Mato Grosso e o de sua vida adulta na França, onde vive desde 1985.

Publicado em 2022 (ed. Patuá, São Paulo), “Na sombra do ipê” faz parte dos numerosos livros autobiográficos de Mazé Torquato Chotil, onde não raras vezes a realidade se cruza com a ficção. Nascida em Glória de Dourados (Mato Grosso do Sul), filha de pais que tinham saído do Ceará para “fazer a vida” em terras do Oeste, Mazé Torquato Chotil, depois de sua infância matogrossense, foi estudar em São Paulo, em meados dos anos 1970. É jornalista, pesquisadora e doutora em Informação e Comunicação pela Universidade de Paris VII e pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Contornando o tempo cronológico e fugindo ao espaço linear, Mazé T. Chotil estabelece muito habilmente um diálogo à distância entre ela e sua amiga de infância, entre o passado e o presente. Um diálogo que permite à autora/personagem de “praticar um olhar interior”, de “dizer coisas pessoais” que, como aprendeu, “não se dizem a outros”. Foi preciso desconstruir “essa verdade”, acrescenta ainda a autora/personagem. “Na sombra do ipê” funciona também como uma terapia.

Assim, sucedem-se pequenos e grandes, felizes e infelizes episódios contados “Na sombra do ipê”. Na abertura de cada capítulo, em forma de mote, uma frase ou algumas palavras soltas como versos, quase sempre ligadas às estações do ano, – como para sublinhar a harmonia entre os ritmos da natureza e a psicologia humana -, anunciam os acontecimentos e as recordações: a amiga dos primeiros tempos no vilarejo e que agora, com 60 anos, está partindo, com um câncer; a morte recente do vizinho parisiense idoso, com um câncer avançado, e simultaneamente a reflexão da autora sobre a possibilidade de escolher o momento de partir para sempre; o diálogo com a amiga, professora, e a contradição obsessiva entre a ânsia de estar em outro lugar e a necessidade de estar na sombra do ipê, de “rever a terra, de resgatar o passado”; a sensação de perda de identidade; as várias mudanças e as viagens de ônibus pelo interior do Brasil, pretexto para evocar lugares, geografias (rios, terras fronteiriças do Oeste, Rondônia, Cuiabá), episódios históricos (guerra do Paraguai, herança tupi-guarani, emigração para o Oeste), sempre com um olhar hipersensível aos outros e à paisagem: “No ônibus, acompanho o despertar do sol pelas 5h30 da manhã. Com a claridade, vejo as pessoas que viajam comigo e aprecio a paisagem (…), sinto o cheiro do capim de um lado e de outro da estrada. (…) Gostaria de ter tempo para ver as pessoas que moram pelas redondezas. Saber como vivem e o que sentem…”.

Entre as duas amigas, são muitas as histórias em comum. Num dos primeiros capítulos, a narrativa torna-se psicologicamente mais densa, com o diagnóstico da doença da própria autora/personagem: câncer do seio em estado inicial, e sua infinita vontade de combater a doença, de ser ativa e de se agarrar à vida com paixão. Uma luta lúcida e corajosa através do tratamento clínico, mas que também ganha forças, inevitavelmente, através do vai e vem permanente entre o passado matogrossense (“vejo-me pequena, pelos 7 anos, a casa de madeira, o batalhão de formigas a passar…”) e o presente parisiense (“o prédio, as crianças brincando no pátio de recreação da escola vizinha”), e ainda a imperiosa necessidade de falar com a amiga cuja voz lhe parecia cada vez mais longe… Lembremos aqui, que no seu livro publicado recentemente em edição bilingue, “Lambranças do sítio – Mon enfance dans le Mato Grosso”, Mazé T. Chotil conta seus primeiros anos de criança no Mato Grosso do Sul.

Com o título “Livro da amiga”, a segunda parte do livro é inteiramente dedicada à resistência e ao calvário da amiga face à doença incurável. Num tom de confidência e com uma perceção extremamente realista e sensível ao mesmo tempo, a autora/personagem evoca a longa fase de tratamento da amiga, mas também seus momentos mais íntimos, como sua paixão louca por João, seus sonhos adiados (“tenho tantas coisas para fazer, tantas viagens imaginadas”; “amiga, prometo que vou te ver”), seus momentos de solidão e de divagação (“Sinto-me leve, tão leve que flutuo de um lado para outro. Passo por cima do jardim. Sinto o cheiro das flores das laranjeiras. Tenho vontade de alcançar as estrelas”).

Com uma estrutura original que foge à linearidade das narrativas impregnadas de autobiografia, numa linguagem simples e coloquial, sem derramamento sentimentalista mas não carente de poesia, “Na sombra do ipê” é um belo livro de memórias que navega entre a realidade e a ficção.

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