Nuno Gomes Garcia conversa com… Ana Margarida de Carvalho: «Vivemos tempos estranhos, difíceis de decifrar»

Ana Margarida de Carvalho, dupla vencedora do Grande Prémio do romance e novela da Associação Portuguesa de Escritores com os romances «Que importa a fúria do mar», em 2013, e depois logo em 2016 com «Não se pode morar nos olhos de um gato». É deste último que a autora nos falará.

O enredo de «Não se pode morar nos olhos de um gato» decorre em finais do século XIX, quando um navio negreiro clandestino afunda ao largo do Brasil, permitindo apenas a sobrevivência de um punhado de náufragos – escravos e senhores – que se veem retidos numa praia que desaparece duas vezes por dia devido à maré cheia. Essas circunstâncias irão forçá-los a ultrapassar preconceitos tão enraizados como a cor da pele, a religião, o estatuto social, os papéis do homem e da mulher na sociedade.

 

O título do romance é belíssimo. Um verso do Alexandre O’Neil. Que sentido lhe atribuis?

Pois, estar a citar um surrealista é quase uma heresia… quem somos nós para decifrar o que é que O’Neill queria dizer com aquilo, com aquele verso. Trata-se de um poema que se chama «Poema do Desamor» em que ele vai conjugando verbos, todos eles muito pouco benignos, depois vai rematando, dizendo «Não se pode morar nos olhos de um gato», como se fosse a estrofe do poema. Eu acho que ao longo do romance, conjuguei esses verbos todos, de uma forma ou doutra. Ora o verso, sim, que é quase hermético, como dizes, e que desperta algum mistério, tem a ver com o olhar, o romance é sobre o olhar, o olhar exterior que se tem sobre o Outro. É um livro que se passa por detrás dos olhos, que tem tudo a ver com a ideia que nós fazemos dos outros, com aquilo que se passa dentro das nossas cabeças.

 

É isso mesmo. Neste teu livro, tu tratas da questão da alteridade e lidas com preconceitos muito vivos na época que tratas no livro: o racismo, o etnocentrismo europeu ou o machismo, entre outros. E neste nosso tempo, talvez o período mais complexo da História da humanidade…

Sim, são tempos muito estranhos, mesmo muito estranhos, difíceis de decifrar, há coisas que estamos a viver pela primeira vez, e por outro lado, erros que estamos a cometer pela enésima vez…

 

Sim, tempos estranhos. Consideras que esses preconceitos de oitocentos ainda estão bem vivos nos nossos dias?

Os preconceitos de finais do século XIX são exatamente os mesmos que existem hoje, só que obviamente, naquela época, eram mais exacerbados. O Brasil foi, por exemplo, o país de raiz católica e ocidental, que mais tardiamente aboliu a escravatura.

 

O historiador francês Pétré-Grenouilleau refere que, no século XVIII, os luso-brasileiros foram responsáveis por 66% do tráfico negreiro.

Sim, nós temos essa bela herança histórica de que não nos podemos orgulhar.

 

E a questão do género?

Sim, mas também a questão social, a questão religiosa, todas elas tinham naquela época uma importância enorme. Existiam umas clivagens que eram inultrapassáveis. Portanto, se eu coloquei o romance em fins do século XIX, não é apenas por achar que esses preconceitos só existiam naquela época e que podia trabalhá-los de uma forma mais exagerada. Fi-lo porque ao trabalhar esses passados estou também a trabalhar este presente.

 

Sim, o teu livro, como todos os bons livros, é intemporal. Não achas que livros como o teu, militantes – não encontro melhor palavra do que essa para defini-lo – que tocam temáticas contemporâneas mesmo que falem do passado, poderão ajudar a alterar a conjuntura atual que permite, por exemplo, que ainda se venda escravos na Líbia. Enfim, não poderão livros como o teu ajudar a fundamentar e a amadurecer opiniões progressistas que se substituam aos meros sobressaltos mediáticos quase sempre inconsequentes?

Não, acho que não.

 

Achas que não?

Nós não podemos mudar o mundo, mesmo que nos custe admitir isso. Podemos admitir que os nossos livros podem mudar consciências individuais, fazer as pessoas pensarem, questionarem-se acerca de uma série de problemas graves que atingem as nossas sociedades. Ter até um grande impacto numa geração, como há casos conhecidos. Mas ajudar a mudar o mundo? Isso não acredito.

 

Bem, que os nossos livros sejam, pelo menos, uma machadada na indiferença pelo sofrimento alheio, que é um dos pecados do nosso tempo.

Sim, levar o leitor para outras paragens, outros contextos, para mais facilmente analisar e questionar o seu tempo. Fazer um livro sobre a discriminação da mulher ou sobre a discriminação racial pode, de facto, ter um papel importante.

 

Falaste agora na discriminação racial. Achas normal que Portugal seja o único país europeu – que foi uma potência colonial e que fomentou a escravatura de maneira nunca vista antes – a não possuir um monumento que celebre a memória das vítimas do tráfico negreiro?

É estranhíssima a nossa relação com o facto de termos sido um país que contribuiu para que milhões de seres humanos fossem escravizados, martirizados, torturados, conduzidos para o tráfico negreiro. Milhões de pessoas que foram assassinadas e escravizadas. Nós silenciámos essa parte da nossa história. Nas nossas escolas, desde pequenos, fomos habituados a associar os Descobrimentos aos grandes feitos. Esquecemo-nos propositadamente, ao longo de gerações, do monstro que criámos, não o associando aos tais belos e grandes feitos das descobertas. Os meus avós, os meus pais, os meus filhos aprenderam na escola que os Portugueses dessa época foram a África buscar ouro, marfim, especiarias e mão de obra. Mão de obra! Nunca se dizia escravos.

 

Mão de obra! Que belo eufemismo.

É, de facto, uma maneira de branquear, de silenciar, de evitar falar naquilo que aconteceu. Há agora uma proposta para se construir um memorial às vítimas da escravatura em Lisboa. Mas, tens toda a razão, é uma ferida que ficou por cicatrizar.

 

Lembro-me de há uns meses ter participado num encontro literário sobre a lusofonia em Portugal e de ter realizado uma intervenção sobre o branqueamento da escravatura e do colonialismo na sociedade portuguesa. No fim, notei uma divisão geracional. A metade mais jovem aplaudiu enquanto a geração mais velha, que viveu o Império, como que se sentiu ofendida pelas minhas palavras.

O que é estranho é as pessoas estarem contra quem deseja começar essa discussão. Seria mais saudável falar abertamente desse passado que incomoda.

 

Ana, para terminarmos. Que livros estás a ler neste momento?

Eu estive no Brasil há pouco tempo e li um livro que se chama «Dois irmãos» do escritor brasileiro Milton Hatoum e também estou a reler o «Cus de Judas» do Lobo Antunes, porque ele até lançou agora um livro novo sobre a guerra colonial e estou curiosa para ver como ele, de novo, tratou o assunto.

 

 

Entrevista realizado no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa

Próximo convidado:

João Pinto Coelho “Os loucos da rua Mazur”, vencedor do Prémio Leya 2017

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