Nuno Gomes Garcia conversa com António Topa: “Íamos aos bairros de lata para despertar consciências”

A coletânea de poesia da autoria de António Barbosa Topa – “Devagar, nas asas do vento” – acaba de ser lançada em edição bilingue pela Oxalá, uma editora com sede na Alemanha e orientada para a promoção dos autores da Diáspora.

Traduzida por Dominique Stoenesco e com ilustrações de Margarida Nogueira, a obra evoca a nostalgia do seu autor pela cidade do Porto, o Douro e o Atlântico, mas relembra igualmente a descoberta daquela admirável terra nova parisiense vista através dos olhos de um jovem português fugido ao fascismo e à guerra colonial.

António Barbosa Topa escreve num estilo coloquial, longe de qualquer “intelectualismo” bacoco e livre de lirismos exagerados. Ele escreve na primeira pessoa e quase sempre em verso livre e curto. O primeiro poema, por exemplo, leva-nos para a foz do Douro, o Cabedelo, a Arrábida e o Atlântico. Elementos adornados pelas gaivotas no ar, os peixes na água e os pescadores nas margens. Esta melancolia positiva do poeta, este otimismo de viver e a alegria de contemplar a mais simples das belezas deixa o leitor desarmado, sonhando ele também com a doce vida portuense debaixo de um pôr do sol dourado.

 

António, nota-se que o seu itinerário poético está intrinsecamente ligado à sua vida. Sente-se muito nos seus poemas a vida que tinha em Portugal durante o fascismo. Fale-nos um pouco da sua juventude. Por exemplo, para quem nos está a ler e não sabe: o que era viver numa “ilha”? Como era a opressão política desse tempo?

Viver numa “ilha”, eu não desejo isso a ninguém. As várias “ilhas” onde eu vivi ainda não eram das piores, mas mesmo assim não tinham o mínimo de condições, a comida era feita assim num fogareiro muito simples, a petróleo, por exemplo. Como era a vida no fascismo? Era, claro, muito dura para toda a gente e sobretudo para nós, jovens. Foi uma juventude sacrificada. Eu já com 17 anos, estudante no Instituto Comercial do Porto, despertei para a luta, com outros, é evidente. Participei em ações estudantis, manifestações, distribuições de panfletos contra o fascismo e a guerra colonial.

 

E o António veio para França exatamente para fugir à guerra?

Exatamente. Eu já tinha ido à inspeção, já tinha o guia de marcha para me apresentar no quartel, no dia 14 de julho de 1969, e saí de Portugal no dia 11 e cheguei a Austerlitz no dia 12, acompanhado de um grande amigo meu, o Júlio Henriques, que também estava mobilizado. Ele para a marinha e eu para o exército.

 

E como foi feita essa viagem do Porto para Paris?

Fui eu que organizei a viagem. Para o Júlio, que eu adoro, o aspeto organizativo não é com ele. Nós tínhamos várias hipóteses. Ou sair através do aparelho de um Partido político, estou-me a referir ao Partido Comunista Português, mas também a outros Partidos mais pequenos. Isto foi na altura em que começou a haver dissensões dentro do movimento comunista. Ou através de um “passador”. Eu, que nunca tinha passado uma fronteira, não conhecia nada disso, achei que era melhor jogar pelo seguro e contratamos um “passador” através de amigos. Saí de Aveiro até Mira e numa carrinha fomos até Verín, na Galiza. Em Verín, apanhámos um comboio e cá chegámos.

 

E como foi chegar a França? As diferenças deviam ser imensas.

Para nós foi uma descoberta. Eu e o meu amigo já tínhamos a paixão pelos livros, pela literatura, e para nós, Paris, a cidade das luzes, era a cidade dos artistas, e como já falávamos francês, embora com grande sotaque e de uma forma muito escolar, a esse nível não foi difícil. Nessa altura, já havia aqui bastantes exilados portugueses e a solidariedade era realmente… real! Havia uma entreajuda entre os jovens portugueses, jovens e menos jovens. E, assim, através de um e através de outro, encontrámos um primeiro emprego numa fábrica. Isso foi muito duro, só estive lá um dia. O meu amigo ainda aguentou uns quinze dias. E, depois, eu já tinha até emprego num hotel como rececionista, mas não queria abandonar o meu amigo… e pouco a pouco lá fomos, participando em lutas. Eu fui, por exemplo, um dos fundadores do Teatro Operário, com o Hélder Costa, o Júlio Henriques e outros. Era um teatro de intervenção e íamos aos bairros de lata para despertar consciências e também participávamos em diversas atividade de tipo político.

 

O regresso a Portugal foi só depois de 1974?

Eu fui informado, participei numa reunião de desertores e refratários. Havia três linhas. Havia quem queria ir dirigir as lutas em Portugal. Havia quem tivesse medo de ser preso pela PIDE aqui, porque estávamos em situação ilegal. No meu caso, vi mais tarde na Torre do Tombo o meu processo, eu tenho contra mim quatro mandados de captura por não ter comparecido ao exército. E havia a terceira tendência que era a daqueles que queriam ir participar com os outros Portugueses na festa. Eu estava nesses. E fui nessa altura, que ainda não tinha saído a lei da amnistia. Eu, que já tinha um filho pequenino, estava disposto, se não tivesse saído a lei da amnistia nesse mesmo dia em que parti, a vir de novo “a salto”… mas não foi necessário.

 

António, nestes poemas a ideia de “descanso” no Cabedelo a olhar o Douro e o Atlântico. A ideia de “regresso”… tudo isso está muito presente. É esse o objetivo de todo o emigrado? Após tantos anos de França, o António ainda sente que é o Porto a sua casa?

Não, sinceramente, não. Agora, não. Essa ideia que refere de regresso, de repouso, isso é mais de alguém que está em fim de vida. E o título sugere isso mesmo, “Devagar nas asas do vento”. Essa ideia vem também noutros livros que já publiquei. Há até um poema que se chama “Viana-sur-Seine”. Aí sim existe essa dualidade. Eu gosto do Porto, sobretudo pelos amigos, o Douro, a Afurada… mas verdade, verdade, o movimentar-me lá, como fazia quando era jovem estudante, já não é a mesma coisa, já me perco, já não é o meu espaço. Tenho amigos que morreram, alguns na guerra colonial, infelizmente. Eu já estou aqui em França há meio século, está a ver? É uma vida inteira.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado:

Quarta-feira, 10 de abril, 9h30

Domingo, 14 de abril, 14h25