Nuno Gomes Garcia conversa com João J. A. Madeira: “Temos a liberdade de imaginar a morte como quisermos”

João J. A. Madeira acaba de lançar “Senha Número Trinta e Quatro”, o seu quarto romance e grande vencedor do Prémio Literário Vergílio Ferreira atribuído pela Câmara Municipal de Gouveia.

Em “Senha Número Trinta e Quatro”, o autor oferece-nos uma história sobre o que existe para além da morte. A história de Alípio, o protagonista da novela, começa com o próprio funeral, ao qual ele assiste pairando acima do caixão. A uma vida medíocre seguiu-se uma morte solitária, mas Alípio terá a sua segunda oportunidade no Além. E, numa espécie de sala de espera, quando uma Voz chama pela senha trinta e quatro, Alípio sente que é hora de recuperar o tempo perdido. Ele torna-se então o anjo da guarda da pequena Beatriz e tudo faz para a proteger durante a sua vida. Protege-a do pai violento e do medo que ela sente dos homens.

Uma bela história que explora o que existe para além da morte, um dos grandes temas da literatura, e que especula sobre o facto de que nem o último suspiro nos poderá roubar a oportunidade de nos redimirmos.

 

João, eu já o ouvi dizer numa intervenção pública que a certa altura do processo criativo, o livro se começa a escrever a si próprio e a mão do escritor limita-se a segui-lo. Eu tenho uma inveja enorme porque isso nunca me acontece. Pode explicar-nos como é que tudo isso se processa?

Nuno, as sensações são difíceis de transmitir, precisamente por serem sensações. Mas, com este livro, aconteceu-me estar a escrever um outro, que não concluí, no qual me senti de repente a fugir para temas que não tinha idealizado para ele. E subitamente pensei não ser o que estava a escrever aquilo que realmente queria fazer. Havia qualquer coisa a meter-se pelo meio. A impedir-me que falasse de algo e, em lugar disso, abordasse outros temas. Enquanto os dedos iam trabalhando no concreto, a mente ia criando histórias que nada tinham que ver com o que escrevia. Então, suspendi o livro, cujo título pensado já se afastava, e muito, deste que depois nasceu. E que, quando o iniciei, era tal a força acumulada em mim que as frases iam brotando em imagens que eu não havia sequer idealizado, mas que me apareciam de rompante no decorrer da escrita. É difícil explicar isto.

 

É raro encontrarmos um livro que começa com a morte do protagonista. Eu também já o ouvi dizer que a morte “é a coisa mais real que existe”. Foi por isso que resolveu tratar este tema?

A morte serve de pretexto, neste livro, também para abordar outros temas. Mas, sim, a partir do momento em que a morte é aquilo que não sabemos que seja. Temos a liberdade de imaginar a morte como quisermos, dar realidade ao modo como a visualizamos, ainda que, digamos, seja uma realidade individual, única. O modo como a idealizei nada tem que ver com aquele que pensa que, morrendo, acabou-se. Mas, em ambos, existe a sua própria realidade, na medida em que não há quem valide ou desminta qualquer uma delas, tornando, por paradoxal que isso possa parecer, real aquilo que poderá não existir.

 

É verdade que existe uma história verídica por detrás deste livro?

Sim, há. Não propriamente por detrás do livro, mas de um episódio. Tentando sintetizar, comecei a trabalhar com 14 anos, uma criança, ainda que, penso, algumas crianças dessa idade, naquele tempo, fossem um pouco mais maduras. A empresa onde trabalhava, de construção civil, decidiu mudar-se para fora de Lisboa, para um local onde já estava a fábrica cujos operários, residentes na zona, construíam as paredes pré-fabricadas que depois eram levadas para os apartamentos a construir. Acontece que no local não havia mais nada. Se quiséssemos beber um café, ver montras, almoçar, teríamos de ter ido de carro, o que não acontecia pelos salários baixos e por termos transporte da própria empresa. Assim, providenciou a administração um refeitório, um bar em que uma das empregadas era casada com um motorista da fábrica e um minimercado para as compras mais básicas ao cuidado de uma jovem. Um dia, vi que a senhora do bar chorava no meio das minhas colegas dos escritórios que tentavam, sem sucesso, acalmá-la. Quis saber o que se passara, mas ninguém me quis explicar o que descobri ainda nesse mesmo dia: o marido da senhora, o motorista, tinha fugido com a jovem do minimercado, deixando somente um recado escrito. O dia passou. Mas, no seguinte, era ainda maior o alarido entre as mulheres, já sem a presença da senhora do bar. O marido e a moça tinham tido um acidente e morrido, ambos. E desde esse dia, nunca deixei de pensar que teria sentido aquela mulher que num dia perdera, para outra, quem amara, mas que a traíra, para, no dia seguinte, o perder definitivamente. Sempre imaginei nesta história um choque de sentimentos contraditórios e, tantos anos depois, vi-me “obrigado” a ficcioná-la. Neste livro.

 

O que significou para si vencer o Prémio Literário Vergílio Ferreira atribuído pela cidade de Gouveia?

Um orgulho imenso, mas também uma grande responsabilidade. Vergílio Ferreira é um dos grandes nomes da Literatura Portuguesa. Ostentar, no meu currículo literário, um prémio com a dimensão do nome desse enorme escritor obriga-me a inspirar-me melhor, a escrever melhor e a ter a humildade de reconhecer que unir para sempre o Senha Número Trinta e Quatro ao nome de Vergílio Ferreira é uma dádiva. E que tudo farei para merecê-la.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Abílio Pires Lousada, autor de “Glórias e Desaires da História Militar de Portugal”

Quarta-feira, 07 de outubro, 9h30

Domingo, 11 de outubro, 14h25

 

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