Nuno Gomes Garcia conversa com Tânia Ganho: “O machismo estrutural está profundamente enraizado”

“Apneia”, o novo romance de Tânia Ganho, surge numa época em que, apesar de alguns avanços, a violência física e psicológica sobre as mulheres é uma das principais chagas das nossas sociedades, seja em França, seja em Portugal. E, mesmo nesta Europa dita civilizada, convém insistir nesta tecla: as vítimas de violência, quase sempre mulheres e crianças, muitas vezes não são defendidas e protegidas pelos magistrados e os tribunais.

Neste romance, Tânia Ganho conta-nos a história de Adriana, uma pintora que se casou com Alessandro, o diretor financeiro de uma grande empresa que conheceu numa viagem a Itália. Eles tiveram um filho, Edoardo, e decidem, após anos a residirem no Reino Unido, ir viver para Portugal. É o início do pesadelo de Adriana. Alessandro começa a vigiá-la, espiolhando-lhe o telefone, negando-lhe a privacidade e reduzindo-a a um monte de defeitos e imperfeições. Devastada, Adriana decide abandonar o marido, tentando salvar-se a ela e ao pequeno filho de cinco anos de idade. É então que começa um périplo infernal pelos tribunais habitados por juízes ora incompetentes, ora esmagados pela burocracia. Ao longo de todo esse processo, Alessandro instrumentalizará o próprio filho, expondo-o a grandes doses de violência durante a guarda alternada, apenas para de vingar da ex-mulher.

 

Tânia, ao ler este teu livro, a certa altura, comecei a olhar para o Alessandro como uma espécie de Medeia masculina, que não se importa de prejudicar o próprio filho para se vingar da esposa. A teu ver, o desejo de vingança pode não ter limites?

Infelizmente, a realidade mostra-nos que, de facto, o desejo de vingança muitas vezes não tem limites e vemos isso todas as semanas nas notícias. Homens que matam as ex-mulheres e os próprios filhos, movidos pelo sentimento de posse e de ódio. Tanto em França como em Portugal, o número de mulheres e crianças vítimas de violência doméstica é assustador. Estive a ver as estatísticas e, em França, no ano passado, morreram 146 mulheres.

 

“Feminicídios”…

Sim, feminicídios. E em Portugal foram 30. Ou seja, a proporção acaba por ser a mesma em ambos os países, tendo em conta o número de habitantes. É aterrador, porque estes crimes são, regra geral, cometidos por vingança, por uma incapacidade de aceitar uma rutura, uma separação. Ainda perdura o sentimento machista de posse, como se as mulheres e os filhos fossem propriedade dos homens.

 

Sim e, de vez em quando, tanto em Portugal e como em França, lá aparecem aquelas decisões tomadas pelos juízes dos Tribunais que nos deixam de cabelos em pé. O que é que leva a esses veredictos às vezes tão medievais?

Medievais é um bom termo, porque é mesmo isso que parecem. O que é que leva a essas decisões? O machismo estrutural, que ainda está profundamente enraizado nas nossas sociedades e contra o qual é muito difícil lutar. Temos de ensinar aos magistrados que as pessoas não matam por amor, matam por ódio e porque sofrem de problemas psiquiátricos. Sinto que, neste momento, estamos a viver uma espécie de retrocesso nos direitos das mulheres e das crianças. Aliás, está tudo ligado. A ascensão da extrema-direita na Europa anda de mãos dadas com o racismo e o machismo. Todo este desrespeito pelos direitos humanos está por trás da ascensão da extrema-direita, e é angustiante, porque nós pensávamos que já tínhamos deixado tudo isso para trás… e não. As pessoas têm memória curta, portanto temos de continuar a falar sobre os direitos de todos, negros, mulheres, homossexuais, crianças. Os direitos humanos acima de tudo.

 

Tens toda razão, eu estou 100% de acordo com o machismo estrutural que existe, ainda, nas sociedades europeias, mas repara que vários partidos da extrema-direita que referes, eu falo do caso do Front National aqui em França, são liderados por mulheres. Além disso muitas das sentenças “medievais” tomadas pelos tribunais são tomadas por juízas, por mulheres. Achas que elas próprias são vítimas involuntárias desse machismo?

Creio que sim, porque foram criadas nesse ambiente machista e muitas vezes – parte-me o coração dizer isto – vemos mulheres tomar atitudes tão machistas como os homens, quase como que a quererem provar que são “isentas”, porque parece que “Feminismo” é quase uma palavra suja. Estranhamente, não se pode dizer que se é feminista sem se ser acusada de odiar os homens.

 

Acontece-me muitas vezes, quando me autodenomino “feminista”, ter de explicar às pessoas o que significa a palavra “feminista”, que é simplesmente “a luta pela equidade e a igualdade absoluta entre géneros”, não é mais do que isso.

Exatamente, e eu continuo a ter essa conversa com as gerações mais novas, inclusive com adolescentes. Pensava que o conceito de “Feminismo” era um dado adquirido para os mais jovens e, afinal, não é. Tenho de explicar que “Feminismo” é única e simplesmente pedirmos a igualdade para todos, termos todos os mesmos direitos. Não é as mulheres reivindicarem mais direitos do que os homens. Isto devia ser um dado adquirido na nossa sociedade e não é.

 

Sim, não é. Infelizmente não é. Mas falemos um pouco de ti. Tu tens uma vida interessantíssima. Além de romancista, tens uma série de romances publicados, és tradutora, uma excelente tradutora, deixa-me dizer-to. Viveste em Londres, em Hamburgo, em Paris… Bem, nós aqui, quem nos escuta e lê, vivemos numa espécie de, no mínimo, de duopólio cultural e linguístico. Tu também viveste essa experiência de binómio cultural. Em que sentido é que essa experiência influencia a tua escrita?

Influencia muito. Em primeiro lugar porque vivemos em duas línguas e duas culturas. É impossível vivermos noutro país, a falar outra língua que não a nossa língua materna, sem que isso nos influencie. Creio que nos dá uma riqueza enorme, porque vivemos com um pé num lado, um pé no outro. Para um escritor, é muito interessante. Faz-nos repensar as nossas raízes, a nossa identidade e, ao mesmo tempo, dá-nos uma empatia para com o Outro, para com o que é diferente. E escrever deve ser sempre desse ponto de vista, de ir ao encontro do Outro e tentar entrar na pele do Outro. Essa multiculturalidade, portanto, tem sido muito positiva para a minha escrita.

 

“Multiculturalismo” é outra palavra que, nos dias de hoje, alguns também consideram “suja”. Quando, no fundo, é o que deveria ser, o mútuo respeito pela cultura de cada um.

Exato. Mútuo respeito pela cultura de cada um, em vez de nos fecharmos dentro das nossas fronteiras, da nossa cultura e da nossa língua.

 

Bem, chegou a hora da pequena provocação. Se eu escrever um romance só com personagens masculinos, ninguém dirá “Olha, um livro só com homens”. Ora, a crítica, sempre que fala do teu trabalho, refere que tu “escreves sobre mulheres”. Isto não te parece sintomático de qualquer coisa?

É muito sintomático! As pessoas nem têm noção, quando fazem esse comentário, do quão machista é…

 

Comentário que é um elogio!

Sim, é dito como um elogio! Perante esse comentário, respondo sempre que o ideal será quando atingirmos aquele patamar na nossa sociedade em que isso nem sequer seja um assunto. Em que escrever só sobre mulheres seja natural. Por enquanto, ainda é apontado com um “ah, que estranho, estás sempre a escrever sobre mulheres”. Não, não estou sempre a escrever sobre mulheres, estou a escrever sobre pessoas que por acaso são mulheres. E isso não devia ser alvo de estranheza, devia ser absolutamente natural. Escrever sobre mulheres, sobre crianças. Portanto, sim, é sintomático do tal machismo estrutural.

 

E a tradução? O que te dá a tradução? O que aprendes com ela?

Eu aprendo muito com a tradução. Em primeiro lugar porque é um trabalho exigente, passo dias às voltas com os dicionários à procura do “mot juste” e isso é extremamente enriquecedor como escritora. Dá-me uma bagagem cultural e linguística muito grande e torna-me extremamente exigente. Vejo aquilo que funciona nos romances de outros autores e também vejo aquilo que não funciona tão bem. E isso ajuda-me, pelo menos espero que me ajude, a crescer enquanto escritora. É fascinante entrar no universo de outros autores e passar horas e horas a conviver com a escrita de outras pessoas. É ver a escrita por dentro.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Paulo Jorge Sousa Pinto, autor de “Dias da História”

Quarta-feira, 23 de setembro, 9h30

Domingo, 27 de setembro, 14h25

 

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