Nuno Gomes Garcia conversa com… Richard Zimler: “São as situações limite que testam a nossa coragem, o nosso sentido moral e ético”

Richard Zimler nasceu em Roslyn Heights, nos Estados Unidos. Estudou religião comparada e jornalismo e vive hoje em Portugal, onde se casou, tornando-se cidadão português.

Traduzido em 23 línguas, Richard Zimler é um autor multifacetado que escreve policiais, literatura infantil e romances históricos. Foi este último género que o consagrou quando publicou o seu primeiro livro, “O último cabalista de Lisboa”.

Desde então, foram várias as obras que abordam a História do judaísmo, nomeadamente as perseguições antissemitas que há séculos envergonham a História europeia.

O livro desta semana – “Os anagramas de Varsóvia”, publicado em 2009 em Portugal e no Hexágono, em 2013, com o título “Les anagrammes de Varsovie” – é um thriller histórico que retrata a vida no gueto de Varsóvia durante a barbárie nazi.

O aparecimento de duas crianças judias mortas, levam um velho psiquiatra judeu a enveredar por uma investigação que tem tanto de sinistra como de perigosa. Terão sido os próprios nazis responsáveis por aquelas mortes ou estará um traidor judeu envolvido nos crimes?

 

Richard, desde muito jovem que leio os seus livros, e sinto que eles também tiveram um papel importante na minha consciencialização em relação à história do povo judeu. Aliás, uma revista publicada nos EUA até já o apelidou de “a consciência judaica de Portugal”. Esse é um papel que assume com facilidade?

Sim e não. Sim, porque adoro escrever sobre História judaica. É uma História muito dramática, com muitos traumas, mas também evidentemente com alegrias e conquistas. É uma História pouco conhecida em Portugal e pouco conhecida em muitos outros países, incluindo nos Estados Unidos, onde nasci e cresci. A História dos judeus portugueses é comovente, porque inclui muitas histórias de sofrimento e sobrevivência. Quando a descobri fiquei maravilhado. Infelizmente, os judeus foram convertidos à força ao cristianismo em 1497 e depois corridos de Portugal. Como consequência, estabeleceram comunidades em muitos outros países da Europa.

 

Aliás, o primeiro livro do Richard, “O último cabalista de Lisboa” aborda esse período quinhentista, mais precisamente o massacre de 1506.

Exatamente, o Massacre de Lisboa, durante o qual dois mil cristãos-novos, judeus forçados a converterem-se ao cristianismo, foram mortos e os seus corpos queimados no Rossio. É um facto, um evento histórico que, antes de eu escrever “O último cabalista de Lisboa”, nunca havia sido adequadamente tratado em Portugal. Eu, na altura, perguntava aos meus amigos, professores, médicos, advogados, se conheciam esse massacre e ninguém conhecia nada. Eu tenho uma personalidade subversiva e adoro escrever sobre eventos que as outras pessoas prefeririam branquear ou esquecer. A história judaica, nesse sentido, é perfeita para mim porque é muito esquecida em Portugal.

 

Concorda que os portugueses têm a tendência para evitar falar, tentar de certa forma passar por cima, esquecer, os momentos trágicos da nossa História? Não acha que faz falta uma espécie de terapia de grupo nacional em que se analisasse sem tabus aqueles momentos em que os portugueses escravizaram povos inteiros, queimaram judeus ou provocaram guerras injustas?

Sim, é verdade, mas eu não vou só culpabilizar Portugal. Isso é uma tendência em todo o mundo. Nos Estados Unidos, onde cresci, não se fala da História dos índios. Eu cresci numa zona que pertencia aos índios Mohawk e Iroquois e nunca, mas mesmo nunca, falámos da sua história, cultura, religião, artes… Nada! Essa tendência é uma vergonha em todo o mundo. Todas as pessoas com poder político e económico “esquecem” os aspetos negativos da sua própria História.

 

Sim, é uma tendência global. Bem, isso leva-nos à Polónia dos nossos dias. Ora, o enredo de “Os anagramas de Varsóvia” desenrola-se no gueto de Varsóvia, precisamente. E sabemos que o Holocausto é ainda uma ferida aberta na Europa Central e de Leste. A Polónia promulgou há pouco uma lei que criminaliza qualquer referência a “campos de concentração polacos”, tentando ilibar a Polónia de qualquer culpa no Holocausto. Mas, por outro lado, o Estado de Israel acusa a Polónia de com essa lei “institucionalizar o discurso negacionista”. Qual a sua opinião? Não estamos aqui perante duas posições extremadas ao máximo?

É curioso, Nuno, foi precisamente por isso que sugeri que conversássemos sobre “Os anagramas de Varsóvia”. Porque eu acho que, de facto, temos de falar de toda a verdade quando falamos de um assunto tão importante como o Holocausto. Temos obrigação absoluta de falar de tudo. Os aspetos mais nefastos, terríveis, abomináveis, mas também falar dos heróis. E no caso específico da Polónia, temos de falar não só nos aspetos positivos da História polaca, tal como o governo deste país pretende. Ou seja, não deveríamos apenas falar dos heróis polacos que resistiram aos nazis, que salvaram milhares de judeus, tal como Irene Sendler, que salvou duas mil e quinhentas crianças judias com uma coragem enorme. Mas também temos o dever, na minha opinião, de falar nos aspetos negativos, das pessoas que colaboraram com os nazis. Em poucos anos, 3,3 milhões de judeus polacos foram mortos nos campos de concentração. E isso não teria sido possível sem a colaboração de muitos milhares de polacos.

 

Ou seja, aquela desculpa que usam muitos países da Europa de Leste, como os polacos, os lituanos, os próprios alemães… que consiste no “ah, nós não sabíamos o que estava a acontecer, se pecamos foi por ignorância…”. Acha que essa desculpa faz sentido? Terá sido possível terem desaparecido de suas casas milhões de judeus sem que os seus vizinhos tenham dado por nada?

Nuno, isso é uma mentira. Se um terço dos seus vizinhos, que vivem no mesmo bairro, no mesmo “quartier”, desaparecessem de um dia para o outro, o Nuno começaria a desconfiar que qualquer coisa muita sinistra e terrível estava a acontecer.

 

Claro que sim.

Foi isso que aconteceu em Varsóvia. 30% dos habitantes de Varsóvia eram judeus. Ou seja, 30% dos vizinhos, das crianças, dos lojistas desapareceram de um dia para o outro. Todos os polacos sabiam muito bem o que estava a acontecer. Não estou a dizer que eles conheciam todos os pormenores sobre os campos de concentração e de extermínio, mas sabiam que os judeus foram forçados a viverem nos guetos de todas as cidades polacas.

 

Richard, eu não quero fazer de advogado do diabo, mas os polacos também correriam risco de vida se salvassem judeus. Os nazis não perdoavam a quem lhes estragasse os planos. Esses polacos também tinham medo, também tinham família.

Sim, sim, sim. Eu reconheço que para os polacos foi tudo uma situação complicada e perigosa. Qualquer polaco que dava comida aos seus vizinhos judeus ou que escondeu uma criança judia arriscava a vida. Não estou a dizer que fosse fácil. Mas são as situações limite que testam a nossa coragem, o nosso sentido moral e ético. E infelizmente centenas de milhares de polacos não fizeram absolutamente nada. Então, para o governo polaco passar uma legislação exigindo que não falemos nos aspetos negativos da colaboração é uma tendência muito perigosa do nosso tempo. Nós temos a obrigação absoluta de denunciar os crimes contra a humanidade dentro do nosso país e nos outros países.

 

Richard, falemos um pouco de Portugal. O Richard já vive aí há muitos anos. Nós estamos acostumados, mesmo a minha geração, a olhar para os Estados Unidos como um país uno, avançado e progressista nos costumes. Bem, a minha pergunta é algo provocadora: Portugal é finalmente um país mais progressista do que os Estados Unidos?

Neste momento sim! Eu acho que os americanos poderiam aprender muito com Portugal e os portugueses. Aprender com a “Geringonça”…

 

“Geringonça” que nos EUA não seria possível.

Não seria (risos)! Neste momento, os EUA têm um governo muito reacionário devido, em grande parte, à eleição de um homem racista, ignorante e grosseiro – Donald Trump. É uma pessoa que não percebe nada de diplomacia. Nem reconhece as alterações climáticas, que, na minha opinião, é um dos dois problemas mais graves que afetam o mundo. O outro problema é o fosso gigantesco entre ricos e pobres.

 

Que não para de aumentar…

Aumenta, sim, e quem visita países como o Brasil verifica que essa desigualdade crescente cria uma atmosfera de violência abominável. O meu grande receio é que os EUA se tornem cada vez mais parecidos com o Brasil e que, no futuro, a classe média seja obrigada a viver atrás de arame farpado e não entre em certos bairros. Infelizmente, já está a acontecer em cidades como Nova Iorque e Los Angeles. E pode acontecer em muitos outros sítios, porque o Trump está a inverter a vida social dos EUA. Os Republicanos acabaram de passar uma nova legislação que baixa os impostos para os mais ricos. E pouco a pouco, Trump e os Republicanos estão a destruir o sistema nacional de saúde.

 

Bem, Richard, para terminarmos, gostaríamos que nos sugerisse um livro de que tenha gostado.

Estou a ler o novo romance de uma amiga minha, a Ana Cristina Silva.

 

 

Entrevista realizada no quadro do programa “O livro da semana” na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado:

Leonardo Tonus, organizador do Festival «Printemps Littéraire Brésiien»

Quarta-feira, 07 de março, 8h30

Domingo, 11 de março, 14h25

 

 

 

[pro_ad_display_adzone id=”906″]