O Brasil: dos povos autóctones a Bolsonaro

A Éditions Chandeigne publicou este verão uma “nova edição revista e completa” da “Histoire du Brésil” (já publicada em 2016) da autoria de Armelle Enders, professora de História Contemporânea na Universidade Paris 8 Vincennes-Saint Denis e investigadora no Institut d’Histoire du Temps Présent e, obviamente, especialista em História brasileira.

Esta nova publicação compreende-se. A eleição do extremista de direita Jair Bolsonaro como Presidente do maior país da América Latina e o segundo país mais populoso de todo o continente deixou surpreendidos os mais incautos dos Franceses. E não é por acaso que o marketing da Éditions Chandeigne insiste no nome desse já infame Presidente brasileiro cujas palavras e cujos atos misóginos, racistas, ultrarreligiosos e antiecológicos percorrem o mundo à velocidade da internet. Uma espécie de Trump tropical que, recorrendo à omnipresença das redes sociais e à capacidade que estas têm de garantir a impunidade, participou, por exemplo, no insulto boçal contra a esposa do atual Presidente francês.

Não se falou noutra coisa em França durante os graves incêndios na Amazónia, chegando-se mesmo a dar-se mais importância “jornalística” à honra da Dama do que à destruição dos pulmões do planeta.

Não admira portanto que esta revisitada “Histoire du Brésil” percorra o período que vai desde os “peuples autochtones à Bolsonaro”, pois este último é capaz de despertar a mais mórbida das curiosidades.

Não é, claro, o primeiro livro em língua francesa a abordar a História do Brasil. O único país lusófono do continente americano tem um peso global difícil de ignorar. A obra de Frédéric Mauro, da coleção “Que sais-je”, publicado em 1973, ainda é essencial e a magnífica “Histoire du Brésil” de Bartolomé Bennassar e Richard Marin é incontornável. Todavia, este belíssimo trabalho de Armelle Enders é de longe o mais atualizado e, tristes tempos estes, é um bom instrumento para travar a guerra ideológica que opõe a ciência historiográfica moderna à visão do mundo defendida pelos correligionários de Bolsonaro que, saídos das grutas da extrema-direita mais ignorante e reacionária, encaram o Brasil como uma construção meramente efetuada por homens brancos vindos da Europa (o retrato da elite brasileira), menorizando assim o papel das mulheres, o genocídio ameríndio e o martírio de doze milhões de africanos escravizados. Crimes – convém dizê-lo sem recorrer ao estafado estratagema do “respetivo contexto histórico” – cometidos pelos antepassados Portugueses. Os mesmos “heróis” que deram novos mundos ao mundo.

Escrita numa linguagem acessível que não diminui em nada a sua complexidade, esta obra de 320 páginas desconstrói então esse “mito nacional branco” que deu origem ao lusotropicalismo, teoria que remete para uma fusão harmoniosa de três “raças” na criação do gigante brasileiro. Armelle Enders não nos deixa esquecer que essa tal “harmonia” resultou da violência exercida pelos europeus sobre os povos americanos e africanos.

Enders desconstrói também o mito do “patriotismo brasileiro” de 1822, ano da independência. “Se a independência do Brasil nasce de um sentimento nacional exacerbado, é paradoxalmente em Portugal e não na América que é preciso procurá-lo”, escreve a autora.

Esta “Histoire du Brésil” de Armelle Enders é então um excelente utensilio para, mergulhando num passado analisado por uma historiografia sã e moderna, compreender as complexidades brasileiras atuais que, por entre insegurança urbana, pobreza galopante e racismo intrínseco, desembocaram na eleição de Bolsonaro.

Ainda será o Brasil, como dizia Stefan Zweig em 1941, o país do futuro?

 

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