O King’s German Legion em Penalva do Castelo para combater as Invasões napoleónicas

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Em 1803, o Eleitorado de Hanover foi invadido pelas tropas napoleónicas, tendo o seu exército sido desmembrado. Muitos militares hanoverianos que pretendiam continuar a lutar contra Napoleão Bonaparte dirigiram-se para Inglaterra, à época unida ao Eleitorado na pessoa do Rei Jorge III.

Por razões de identidade e facilidade linguística, os militares provenientes de Hanover foram agrupados numa única unidade, designada de King’s German Legion (KGL), que passou a integrar o exército britânico.

Eram unidades de elite, porquanto, ao contrário dos britânicos que confiavam a instrução da tropa a sub-oficiais, no KGL a formação e o treino eram também ministrados pelos próprios oficiais.

Participou em diversas campanhas da Guerra Peninsular (1808-1814), com destaque para as Batalhas da Corunha, Vitória e Pirinéus e os Cercos de Ciudad Rodrigo e de Burgos, culminando a sua ação na Batalha de Waterloo, em 18 de junho de 1815.

A Legião foi dissolvida em 1816 e parte dos seus oficiais e soldados foram integrados no exército do refundado Reino de Hanover.

 

Enquadramento e antecedentes

Em janeiro de 2013, deparei-me no fórum de genealogia do site Geneall.net com um cidadão alemão, Roland Gerls, que procurava informações sobre Maria do Amaral, sua trisavó, provavelmente, filha de José Paulino Barreiros do Amaral e de Luísa Tomásia Pedroso de Faria, da Quinta de Gôje, Penalva do Castelo, hipótese nunca validada, porquanto se desconheciam o nome dos seus progenitores.

Maria do Amaral casara em maio de 1813 com Julius Wilhem Gullenbeck, Sargento do King’s German Legion (KGL), regimento hanoveriano que, no inverno/primavera de 1813, estivera estacionado em Castendo.

Mediante autorização escrita do Coronel Bodecker, Julius e Maria casaram, perante um capelão luterano, em Mondim da Beira, Tarouca, quando o exército de Wellington, incluindo a Legião Alemã do Rei, se dirigia para norte, atravessando o Douro, em direção a Espanha, onde mais tarde se desenrolariam importantes batalhas – Vitória e Pirinéus – contra o exército napoleónico.

Maria foi viver para Hanover, teve dois filhos e faleceu em 1861.

Roland Gerls esteve sempre empenhado em descobrir traços de Maria do Amaral, em Portugal, tendo-se mesmo deslocado, inicialmente, a Penalva do Castelo e Viseu, e, posteriormente, ao Porto.

A este propósito, Cfr. Geneall.net.pt: tópico “Família Barreiros do Amaral, Ínsua, Penalva do Castelo”

Roland Gerls com base no livro do general alemão Bernhard Schewertfeger sobre a história do KGL, onde se descrevem as batalhas e movimentações daquele Regimento do Exército Britânico constituído por militares do Ducado de Hanover unido à Grã Bretanha na pessoa do Rei Jorge III, apurou que a Real Legião Alemã (KGL) esteve aquartelada em Penalva do Castelo no inverno/primavera de 1813, especificando mesmo Castendo e Gôje.

 

Evidências da presença do KGL em Penalva.

Tradição oral

Na freguesia da Ínsua, pelo menos na minha família, era frequente por referência a determinada pessoa dizer “ainda pertence aos alemães”, significando com isto parentesco longínquo. Embora esta menção fosse feita de maneira vaga, não podia deixar de espelhar algo que estava, difusamente, na memória coletiva. E quem eram “os alemães” cuja memória perdurou até há poucas décadas? Creio serem os militares da Real Legião Alemã.

 

Teor dos registos paroquiais da Ínsua da época

Consultando os registos paroquiais da freguesia da Ínsua, podemos verificar no tocante a batismos, pelo menos três registos elucidativos, que atestam o batismo de membros da Real Legião Alemã, por conversão da fé Luterana à fé Católica. A razão que os levou a abjurar seria possibilitar o casamento pelo rito católico.

Temos assim, em vésperas de o KGL abandonar Penalva em direção a norte, em 2, 3 e 9 de maio de 1813, três assentos de batismo, de adultos, que cito de forma abreviada, com evidente deturpação dos vocábulos estrangeiros, fruto de incorreta “tradução fonética”,

– Batismo em 2.5.1813 de André Amborg, do Eleitorado de Hanover, nascido em Ostend, Eleitorado de Hanover, na Alemanha;

– Batismo em 3.5.1813, de João Bude, do Ducado de Hanover, soldado músico da 2ª Companhia do Primeiro Batalhão da Real Legião Alemã;

– Batismo em 9.5.1813, de Frederico Peche, soldado músico da 7ª Companhia da Real Legião Alemã, nascido em Ritzbitel, Ducado de Hanover.

Para além destes, temos outros assentos paroquiais com elementos relevantes:

– Batismo de Ana, em 29.6.1814, filha de João Hermann, natural do bispado de Estrasburgo, Alsácia, e de Maria Tomásia, natural da Ínsua. De notar a particularidade de o batismo católico ter acontecido em virtude de “haver dúvidas quanto à validade do batismo anterior conferido por um sacerdote alemão, Capelão dum regimento hanoveriano, que era luterano”. Refira-se ainda que João Hermann e Maria Tomásia viriam a casar, pelo rito católico, na Ínsua, em 5.4.1818, com autorização especial do Bispo de Viseu, ratificando o casamento anterior celebrado “pelo rito dos Protestantes, na Vila de Celorico, em presença do Capelão do Regimento” anos antes. Wellington tivera o seu Quartel-General durante algum tempo em Celorico da Beira.

– Batismo em 10.7.1815 de Antónia, filha de Agostinho Shitteze e de Luzia Jacinta, ele natural da Vila de Peine, bispado de Helderhim, Império da Alemanha, e ela da Quinta de Gôje,

– Batismo em 12.2.1817, de João, filho de Agostinho Shitteze e de Luzia Jacinta. Agostinho Shitteze e Luzia Jacinta haviam casado em 21.8.1814 na Sé do Porto.

 

O Livro de Bernhard Schwertfeger sobre o KGL

Por via indireta, e citando Roland Gerls, em e-mail de 12.5.2013:

«Les troupes anglaises séjournaient pendant l’automne 1812 et printemps 1813 à Almeida, Goje, Castendo (10 km à l’est de Vizeu). Pendant ces séjours il y avaient des festivités auxquelles la population jeune portugaise des villages des alentours participaient.

Il semble normal que Maria a aussi pris part à ces festivités et rencontra là le jeune Sergent Julius Wilhelm Güllenbeck.

En mai 1813, les troupes commençaient à marcher vers le nord en traversant le Douro. Juste avant cela, un mariage de champs, a eu lieu le 15 mai 1813, entre Maria et Justus Wilhelm, dont il existe un papier! Il est possible que Maria ait reçu le nom ‘Güllenbeck’, en Hanovre son nom était Maria Güllenbeck, née do Amaral.

Il n’est pas connu comment Maria arrivait en Allemagne (Hanovre)».

A referência à presença do KGL em Terras de Penalva foi extraída do livro do Major General alemão Bernhard Schwertfeger, publicado em 1907 em Hanover, citado por Roland Gerls no esforço para encontrar traços da sua trisavó Maria do Amaral. Numa viagem que fez ao Porto, com visita ao Arquivo Distrital e à Casa do Infante, sempre em busca de dados sobre a sua ascendente, Gerls fazia-se acompanhar de um exemplar de tal obra. Infelizmente, as pesquisas que fez foram infrutíferas, mas as suas informações revelaram-se preciosas para despertar para a realidade da presença da Real Legião Alemã em Castendo, facto que os registos paroquiais confirmam.

 

Impacto da presença do KGL em Castendo

Não é difícil imaginar o impacto da presença do KGL, durante alguns meses em terras de Penalva, no quotidiano tranquilo da população local. O aparato das forças militares e a organização de festividades, não deixaria ninguém indiferente.

Para além das uniões entre militares hanoverianos e jovens penalvenses que os registos paroquiais documentam, quantas mais terão acontecido? À semelhança de Maria do Amaral, quantas outras jovens terão acompanhado os militares em direção ao Reino de Hanover e aí se fixado?

A propósito, cabe referir que em Bexhill-On-Sea, em Susssex, Inglaterra, idêntico fenómeno de ligação afetiva e amorosa entre militares do KGL e jovens locais também aconteceu, embora numa escala incomparavelmente maior, sendo esse período estudado, preservado e homenageado através do “Bexhill Hanoverian Study Group”, tal é o sentimento de pertença de grupo dos descendentes dos militares do King’s German Legion.

 

Dificuldades e objeções

Uma das dificuldades que se levantam na análise dos registos paroquiais prende-se com o facto de os nomes, quer das pessoas quer das localidades estrangeiras, terem sido manifestamente aportuguesados, notando-se um claro predomínio da fonética sobre a etimologia. Os párocos que lavraram os assentos não dominariam línguas estrangeiras, muito menos a alemã, daí as imprecisões onomásticas e geográficas, tendo, contudo, sempre por denominador comum o Eleitorado ou Ducado de Hanover.

Como exemplo dessa deturpação, noutro contexto, um pároco num assento de um filho de João Hermann, escreveu “batizei a Manuel, filho de João Armão…”.

A escassez de assentos na freguesia da Ínsua com referência a elementos do KGL, o que implica buscas em todas as paróquias de Penalva e concelhos vizinhos. Veja-se o exemplo atrás de Agostinho Shitteze e Luzia Jacinta que casaram na Sé do Porto em 21.8.1814.

Acresce a necessidade de fazer a correta correspondência entre os nomes de família de pessoas e localidades mencionadas nos assentos e a realidade.

A falta de outras fontes primárias de informação também estreita a descoberta de novos elementos. Será que nas atas coevas da Câmara Municipal ou da Santa Casa da Misericórdia, a existirem, se faz alguma alusão à presença do Regimento Hanoveriano?

 

Conclusão.

Quem são e onde estão os descendentes destes hanoverianos do KGL, na sua breve passagem por Penalva do Castelo?

Naturalmente, que se diluíram na população penalvense, e de outros concelhos vizinhos, soterrados e esquecidos na poeira do tempo.

Resgatar a memória deste período tão peculiar da história de Penalva não se afigura tarefa fácil, mas creio que é possível e mesmo desejável fazê-lo.

Assim a divisa do KGL “Nec Aspera Terrent” nos inspire.

 

César Tavares (foto)

Vila Nova de Gaia, atualizado em outubro de 2020

 

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