Lusa | Nuno André Ferreira Home Opinião Opinião: A Serra da Estrela, passado, presente (o lume)… recordaçõesAntónio Marrucho·16 Agosto, 2022Opinião [pro_ad_display_adzone id=”41082″] Com os anos que passados, atos, momentos, lugares, passam a ser recordações. Vem isto a propósito do drama que a Serra da Estrela e as gentes que aí nasceram, que aí vivem, estão a atravessar neste verão demasiado quente, demasiado destruidor. A causa: os incêndios. A culpa de quem é? Passamos 5 anos da nossa adolescência em Manteigas. Anos longe de nossos pais emigrantes, para seguirmos estudos, estudos que terminariam com a obtenção do quinto ano, atual nono ano escolar (1) (2). Um dos primeiros artigos que escrevemos para publicação no LusoJornal, foi sobre os incêndios, sobre o que vitimou dezenas de pessoas em Pedrógão Grande (3). No transato, aqui escrevemos artigo cujo suporte foram as estatísticas dos incêndios em Portugal (2). Que mais dizer? Que mais escrever neste verão 2022 sobre os incêndios? Sentimo-nos desarmados, impotentes. Dramático. Sempre as mesmas imagens na TV portuguesa há um mês para cá, sempre as mesmas palavras dos Presidentes dos Municípios afrontados com o fogo, trabalho interminável para os bombeiros… estar aqui em França ou estar lá, todos gostaríamos de fazer algo, de ajudar, mas como? Chega… que país tão bonito o nosso Portugal, somos exemplares em muitos aspetos, contudo um punhado de terroristas, de inconscientes, chega para colocarem um país a arder, um país com o coração aos saltos. Sonhamos com o sol português, sonhamos com os belos monumentos e paisagens de Portugal, e sobretudo com um país sem incêndios! O mais grave de tudo isto é que temos a impressão que o sonho está-se a tornar irrealista… levará muito tempo para se concretizar… o tempo das mudanças climáticas dura gerações e bem mais que isso. Serra da Estrela, Manteigas, que beleza, que boas gentes, que recordações, parte delas destruídas pelo incêndio iniciado do outro lado da encosta, para os lados da Covilhã, de Vila do Carvalho. Assistimos de longe, de França, à destruição de paisagens, de bens particulares… destruição que começou no sábado pelas 3 da manhã no dia em que a volta a Portugal chegava à Torre! Uma bela promoção contrariada pelo dramático incêndio iniciado pelo luar, o sol dando algumas tréguas interrompidas por mão humana. Vêem-nos recordações dos tempos passados em Manteigas e dos locais pelos quais o fogo passou, está a passar, imagens do passado que o presente está a destruir. Que justificação para se destruir, para aniquilar, lugares que fazem parte do património mundial? Da Serra da Estrela só temos boas recordações. Recordações dos nossos tempos de escuta, respeitar a natureza era a norma. Acampámos em muitos locais. Quando o acampamento terminava, devíamos deixar tudo como encontrámos ou ainda melhor, mais limpo, mais acolhedor. Lugares que o lume escureceu, está a destruir. Vem-nos à memória os acampamentos efetuados no Covão da Ametade, ali onde nasce o rio Zêzere, na base do Cântaro Magro. Quantos saltos dados de pedra em pedra, para, mesmo junto da nascente, recolhermos, apanharmos, zimbre, pequenos frutos que quando secos, coloram, dão gosto à água ardente, aliás aguardente. Os quilómetros que separavam Manteigas do Covão da Ametade eram feitos a pé, de mochila às costas. Uma pausa impunha-se na Fonte Paulo Luís Martins, água fresca, quase gelada, a água glaciar, considerada talvez a melhor água mineral do mundo, segundo estudo científico. Nas tendas que tinham sido oferecidas pelo Exército, dormíamos mais que a norma, lotação sempre esgotada, uma maneira de escapar ao frio noturno. As tendas não tinham fundo, para nos precavermos contra eventuais répteis, fazíamos, toda à volta da tenda, uma rigola, nesta colocávamos uma corda, dizia-se que as cobras recuavam ao tocarem nos fios da corda. Mau momento na altura, boa recordação de hoje: decidimos acampar pela Páscoa no Covão da Ametade. Depois de uma noite fria, ao acordarmos, deparamo-nos com um nevão e pegadas de animal junto da nossa tenda. Era hora do pequeno-almoço: procurámos alguma lenha que encontrámos debaixo de rochedos. Gastámos uma caixa de fósforos para acender o lume, colocámos a cafeteira em cima da lareira constituída com algumas pedras. Um de nós tendo frio aos pés, colocou a bota em cima da lareira, pedras caídas, lume apagado, discussão entre amigos e regresso a Manteigas sem o café na barriga… Descida para Manteigas pelo magistral vale glaciar, o único da Península Ibérica, ainda restavam algumas casotas de pastores cobertas de colmo, encosta que o lume acaba de pintar de preto, a cor do luto, da destruição. À entrada de Manteigas, o Viveiro das Trutas acolhia-nos, a água enxofrada, quente, brotava junto à estrada colorindo de branco a calçada, água que alimenta atualmente as Termas. Quantos caminhos como escuta percorridos a seguir setas de diversos formatos: pedras, giz, galhos… o semáforo, o morse, como meios de transmissão, estávamos longe dos telemóveis… O fogo vindo de Verdelhos, passou por Verdelhas. Recordamo-nos do acampamento que fizemos junto à praia fluvial, uma das primeiras do país. Responsável pela parte sénior do acampamento, uma vez partimos a pé, ainda o dia não tinha nascido, caminhámos: Vale das Amoreiras, Sameiro, Manteigas, encosta do vale glacial, regressámos ao acampamento já a noite tinha caído. Foram lugares visitados estes dias pelo indesejado lume. O fogo passou por Verdelhos, Vale da Amoreira, Sameiro,… 10 mil hectares ardidos, subiu encosta fora em direção a uma das belas pousadas de Portugal, a de São Lourenço. Por aí acampámos uma outra vez, em Vale da Castanheira, perto da nascente do Mondego. Também por ali o tempo, o vento, moldou a paisagem, as pedras. Não longe da estrada entre Manteigas e Gouveia, junto da Pousada, avistámos a Cabeça do Velho, a arte do tempo, dos milhões de anos que passaram por estes locais. Do outro lado da serra, o artista construiu em milhões de anos de trabalho a Cabeça da Velha, a Pedra do Urso… Há quem diga que não longe, para os lados de Folgosinho, aí nasceu ou aí defendeu o território, o Chefe de guerra, o mais conhecido dos primeiros lusitanos: Viriato. Recordamos as missas em igreja a céu aberto ao pé da Pedra do Urso, da Cabeça da Velha, da Nossa Senhora da Estrela, missas adaptadas pelo Padre Rafael Sanches. Por altar… uma simples rocha. Recordamos de nos termos encontrado pendurados a uma rocha durante um jogo de escuta no Covão da Ametade, o vazio a nossos pés de 10 metros de altura… de termos caído no rio Mondego durante um jogo noturno… recordamo-nos… recordamo-nos… Do outro lado, as Penhas da Saúde, deste lado as Penhas Douradas, entre Manteigas e Gouveia. Será que o lume aí chegou? Será que vai chegar? São pequenos paraísos… Penhas que se desejam Douradas. Recordamo-nos que, no outono, para os lados do Poço do Inferno, apanhámos castanhas de encher a boca, castanhas em florestas ardidas neste verão de 2022. Que resta das cerejeiras à beira da estrada por cima do Viveiro das Trutas e das que enfeitavam a estrada na saída de Manteigas para as Penhas Douradas e Gouveia? A nossa distração no fim do ano escolar, era subir às cerejeiras e comer o seu fruto em liberdade, fruto pertencente a quem desejasse colher… que barrigadas! Manteigas, o mais pequeno concelho de Portugal com apenas três freguesias: em Manteigas, as freguesias de Santa Maria e São Pedro e a aldeia do Sameiro. Gente boa, gente trabalhadora, gente com memória. Três décadas depois de termos estudado por Manteigas ao passearmos pela vila fomos por muitos reconhecidos. Tivemos estes dias o João Caramelo ao telefone, escuta há 60 anos, estava de prevenção para abastecer, ajudar os bombeiros. Durante a conversa telefónica ouve-se um carro dos bombeiros, encaminha-se para o lado das Termas. Será que ainda para aí existe o carvalho milagroso? Carvalho que tinha durante todo o ano folhas verdes persistentes. Nestes dias de verão, de destruição, de aniquilamento de paisagens que levaram décadas a se moldarem, temos um pensamento para convosco, neste momento de aflição, mesmo que a paisagem venha a reconstruir-se, será para as gerações vindouras, porque, para nós, restam as boas recordações das belas paisagens de Manteigas e seus arredores. Os acontecimentos, as recordações, os dizeres, temos evidentemente que os colocar dentro de um certo contexto, um certo sentir… sentir que nem sempre será coletivo, sentir que com os anos que passam podem ser, por vezes, diferentemente. Estavam agendados em Manteigas dias de festa, festa anulada, resta a Festa de Nossa Senhora da Graça para inícios de setembro. É por vezes da adversidade, da destruição, que o renascer surge. Boa coragem amigos, população da Serra, população de Manteigas. Vai ser necessário coragem para o sarar as feridas. Notas: (1) https://lusojornal.com/opiniao-o-ca-o-la-do-filho-do-emigrante-dos-anos-60-a-80/ (2) https://lusojornal.com/opiniao-o-ca-o-la-do-filho-do-emigrante-portugues-dos-anos-60-a-80-ii/ (3) https://lusojornal.com/les-incendies-le-drame-portugais/ (4) https://lusojornal.com/reflexions-et-statistiques-sur-les-feux-au-portugal-lannee-2021-une-annee-particuliere/ [pro_ad_display_adzone id=”46664″]