Nuno Gomes Garcia conversa com João de Melo: “A Literatura pretende que não haja ilhas nem fronteiras”

João de Melo – autor de romances como “O meu mundo não é deste reino” (1983), “Autópsia de um mar em ruínas” (1984) ou “Gente feliz com lágrimas (1988) – recebeu há pouco o Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto da sua obra e, ainda mais recentemente, o Governo português concedeu-lhe a Medalha de Mérito Cultural “em reconhecimento do inestimável trabalho de uma vida dedicada à produção literária e à escrita”.

Sempre dividido entre o conto e o romance, João de Melo acaba de reeditar “As coisas da alma e outras histórias em conto”, coletânea de contos publicada pela primeira vez em 2003. Este recente exercício de reedição de alguns dos seus livros está relacionado, tal como se refere na nota introdutória a este livro, com o facto de, e passo a citar o autor, “pertencer ao número dos descontentes por natureza e paixão – que nunca dão por finda a obra começada”.

João de Melo nasceu em São Miguel, nos Açores, em 1949, estudou no Seminário dos Dominicanos, serviu na Guerra Colonial como enfermeiro militar, estudou Filologia Românica, foi professor do ensino secundário e Conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Madrid durante longos anos.

Estes 18 contos de João de Melo surgem-nos no seu habitual estilo poético e oferecem-nos alguns personagens profundamente humanos.

 

No que diz respeito a contos, o João é uma das referências portuguesas. O João escreve contos enquanto escreve um romance ou são momentos que não consegue misturar?

Eu costumo alternar um livro de contos, ou dois, e depois um romance. Isso tem muito a ver com o chamado ritmo interior de cada um de nós. Existe a apetência natural para coisas mais breves ou então para compromissos mais longos, embora eu me considere muito mais um romancista, um romancista que gosta de escrever contos porque acha que o conto é um desafio ao romancista, até para uma certa ginástica da sua linguagem e para contar histórias com uma certa brevidade. Histórias que sejam capazes de captar a emoção e o interesse do leitor. De resto, como sabe, o conto em Portugal já conheceu melhores dias e eu sou uma das pessoas que resiste a continuar esse género em paralelo ao romance porque é dessa forma, de algum modo, que eu me sinto um escritor mais completo. Percebe? Com uma mão, ou as duas mãos num romance, mas de vez em quando, gosto de escrever histórias avulsas que surgem sobre os mais variados pretextos. Às vezes a pedido, pessoas que me pedem um conto para uma revista, um artigo, mas geralmente são contos espontâneos, pequenas histórias que me surgem e onde eu vou plasmando também uma ideia de narração, de narrativa diferente da do romance.

 

João, dois dos seus romances que li ainda muito jovem – “O meu mundo não é deste reino” e “Gente feliz com lágrimas” – mas também este livro, por exemplo o conto “Algo como um regresso a casa”, tratam “temáticas açorianas” (não se vê, mas estou a fazer umas aspas com os dedinhos). Apesar disso, o João, já o li em algum lado a afirmar isso, não admite a existência de uma Literatura açoriana. Porquê?

É muito simples. A minha ideia foi sempre a de resgatar a chamada Literatura Açoriana para o interior da grande Literatura Portuguesa. Ou mais ainda, se isto não parecer muito pretensioso, para o interior de uma Literatura de Língua Portuguesa. Quer dizer, eu acho que uma Literatura como a nossa, a portuguesa, não é aquela que se faz entre Lisboa e Porto, não é essencialmente uma Literatura urbana, é aquela que também acolhe os chamados regionalismos, a Literatura rural, a memória e a reconstituição das coisas da infância. Para um verdadeiro escritor, se me permite usar a expressão desta maneira, a geografia é o que menos importa. A condição humana de uma ilha, portanto, os humanos que vivem numa ilha, salvo questões de pormenores ou alguma condicionante histórico-geográfica, essas pessoas pertencem à mesma condição humana daquelas que vivem nas grandes cidades. Aliás, as grandes cidades, pelo menos as cidades portuguesas, estão cheias de pessoas que vêm das províncias, das ilhas, do norte, do centro, do sul do país. E aqui gera-se uma ideia daquilo que a Literatura tem de fazer e a que vozes, a que expectativas, a Literatura tem de responder. Quando nós militamos pela ideia da existência de uma Literatura açoriana estamos a confiná-la às ilhas, estamos a dizer que escrevemos dentro de fronteiras. Ora, a Literatura pretende que não haja ilhas nem fronteiras e que o importante é sobretudo a identificação profunda das pessoas no seu lugar, na sua casa, na sua rua. Para que, pela via da autenticidade, daquilo que elas são e daquilo que elas vivem, se projete essas pessoas para lugares muito mais longínquos e para que sejam também universais. Esta é a minha ideia. Há uma espécie de programa interior que eu tenho em tudo aquilo que faço, em tudo aquilo que escrevo, mas não tenho o mínimo de desprezo ou menosprezo, digamos, nem pela minha condição de açoriano nem de escritor açoriano que trabalha para a construção de uma Literatura da língua portuguesa. E é nesse ponto que eu divirjo de alguns que são apóstolos da ideia da existência de uma Literatura açoriana em separado das outras Literaturas.

 

Bem, ficou tudo muito bem explicado. João, o “Gente feliz com lágrimas” vai em quase 30 edições, o que significa que este livro foi lido pela sua geração, depois pela minha e certamente é lido agora pela nova geração. Ou seja, tornou-se um livro transgeracional. Isso deixa-o surpreendido?

Deixa e não deixa. Quer dizer, já me habituei ao facto porque é verdade que esse livro mudou por completo a minha vida. Ele teve uma aceitação tão grande junto das pessoas em geral que é, como diz, um livro que já pertence a mais do que uma geração.

 

Será já um clássico?

Eu não sei bem se se vai transformar em clássico. Como eu dizia algures no outro dia, todos os dias caem escritores do céu para a terra. Eu não sei até que ponto o leitor se vai manter fiel a um livro, a um autor, à sua escrita… No caso do “Gente Feliz com Lágrimas”, aquilo que eu defendo é a memória que ele regista de um tempo português que nem toda a gente viveu. E, não sendo um romance histórico, naquele sentido que nós damos ao romance histórico, é, apesar de tudo, um romance que interroga a História. Apanha a ditadura, a ruralidade, a pobreza, o salazarismo quase todo, o problema africano que, tal como referiu no início, também é muito forte na minha obra. A amplitude de quarenta anos presente nesse livro oferece ao leitor uma espécie de perspetiva da mudança das coisas, das pessoas e da marcha de um país por dentro e por fora.

 

Entrevista realizada no quadro do programa «O livro da semana» na rádio Alfa, apoiado pela Biblioteca Gulbenkian Paris

Próximo convidado: Jacques Alexandre

Quarta-feira, 13 de março, 9h30

Domingo, 17 de março, 14h25