Ernestina Carreira diz que Departamentos portugueses nas Universidades francesas sofrem de invisibilidade



Ernestina Carreira é Diretora do Departamento de estudos portugueses e brasileiros na Universidade de Aix-Marseille, que comemorou na semana passada 50 anos de existência, e também é a responsável pela Cátedra Eduardo Lourenço inaugurada em 2018 nesta mesma universidade.

Ernestina Carreira respondeu às perguntas exclusivas do LusoJornal durante a inauguração de uma exposição sobre as relações entre Portugal e a Provence e sobre os 200 anos do Consulado Geral de Portugal em Marseille.

.

Porque comemorar os 50 anos da criação deste departamento?

Na realidade trata-se de uma conjunção de várias razões. A primeira é que, em Aix, os saberes para nós têm de ter uma aplicação. Isto é, os alunos aprendem e depois aplicam os saberes a um objeto e geralmente é um objeto de comunicação. Um dos nossos projetos é mobilizar os estudantes de várias promoções em volta de um projeto coletivo. No ano passado, por exemplo, fizemos a exposição “Os 3 Mundos de Santarém”, sobre as comunidades judias, muçulmanas e cristãs, em Santarém, a exposição foi um sucesso e ainda continua no Museu Diocesano. E foi um sucesso porque precisamente há uma mobilização de energia, há uma mobilização dos saberes dos professores, mas também das competências técnicas dos estudantes. No fundo, temos jovens que têm uma experiência em informática que é muito mais importante que a nossa. Nós temos o saber e eles têm o modo de valorizar os saberes.

A comemoração dos 50 anos é um desses projetos coletivos?

Foi um trabalho coletivo da associação dos antigos estudantes, dos professores e dos estudantes atuais. A finalidade era realmente essa: de ter um objeto que eles pudessem ver, na realidade, como é que um objeto surge quando cada qual trabalha no seu cantinho e depois como é que surge o objeto. Em França, um dos problemas maiores que nós temos como Comunidade e como Departamentos de português – como dizia o nosso colega Ricardo Lima de astrofísica da Universidade de Marseille – nós não temos visibilidade, não temos visibilidade suficiente. E a visibilidade só se pode adquirir com eventos de comunicação, porque não é na nossa sala de aula… Nós podemos formar gerações de estudantes, mas uma sala de aula nunca vai dar a conhecer uma disciplina fora dos estudantes que nós formamos.

É assim tão importante que os Departamentos de português das Universidades comuniquem para o exterior?

Sim. O mundo mudou, a Universidade mudou e nós temos ao mesmo tempo o dever de formar e de dar a saber que formamos, de informar sobre o que fazemos. Acontece a mesma coisa com a pesquisa. Antes era uma coisa muito confidencial, em que as pessoas publicavam e um pequeno grupo lia. Hoje em dia, há a obrigação, quando se publica um trabalho científico, de ter uma adaptação para o público.

Esta exposição sobre os 200 anos do Consulado Geral de Portugal em Marseille entra nessa situação?

Na realidade é a adaptação de trabalhos científicos, de pesquisa científica. Toda a parte história dos Consulados, na realidade foi feito pela Michèlle Janain, antiga professora de história, especialista da Inquisição, portanto ela é uma pesquisadora, que fez um verdadeiro trabalho de terreno, com arquivos que foram digitalizados nos últimos anos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, nomeadamente arquivos respeitantes à II Guerra mundial. Houve um projeto português de digitalização e nós aproveitámos essa digitalização e a integração online dessa documentação. Tudo o que se vê aqui, nesta exposição, na realidade é o resultado de pesquisa, de aprendizagem da pesquisa pelos estudantes, mas também o resultado da pesquisa publicada em Portugal e fora de Portugal, sobre a nossa região.

Os painéis mostram uma realidade rica e intercâmbios intensos entre a Provence e Portugal…

A região de Marseille tem uma visibilidade negativa. Na realidade, em Portugal quando se fala de Marseille é sempre o lado violento, ora, a cidade mudou completamente. Essa visão negativa de Marseille é uma visão que tem talvez uns 30 ou 40 anos e trabalhar sobre a relação entre Portugal e a Provence é uma maneira também de restituir uma realidade histórica, uma realidade que não é visível hoje, porque não é divulgada. Esse era o nosso objetivo, só que nós nunca pensámos que havia, quando começámos a aprofundar, tanto ponto em comum. Porque a Provence e Portugal começaram a afastar-se no século XV, quando Portugal se virou para o Atlântico. E na realidade, descobrimos que a relação continua sob outras formas. É isso que talvez a exposição mostra.

Então esta exposição repõe o contexto histórico?

A verdade é que hoje em dia, tenta-se patrimonizar tudo o que é memória das instituições. Era uma coisa que não se fazia ainda há 20 anos. Às vezes nem se guardavam arquivos. Mas é bom visualizar o que foi e o que é, para entender, no fundo, as tradições de uma instituição como o Consulado. Nunca é por acaso que o Consulado está em tal local, e tem tal atividade e tal tradição. É isso que nós quisemos realmente mostrar, como é que 200 anos de existência, mesmo se já não há arquivos no Consulado – porque os arquivos vão naturalmente para Portugal – como é que se consegue restituir práticas que ainda hoje vamos encontrar na Administração consular em Marseille e na região.

Esta exposição serve também para dar visibilidade à Comunidade portuguesa?

A Comunidade portuguesa e brasileira aqui nesta região PACA é atualmente uma Comunidade completamente atomizada. Nós não somos uma das grandes Comunidades em França e, tanto para a formação num Departamento, como para este tipo de exposição, se nós dermos sentido, se nós não reconstituirmos uma narrativa a partir dessa atomização, nós não temos nada, não temos existência e continuamos na invisibilidade. Então, este tipo de objeto de comunicação é também uma ‘visibilização’ que depois continua. As nossas exposições – com a associação Portulan já vamos na 5ª ou 6ª exposição – há exposições que há 20 anos ainda andam a rodar na região e que transmitem o património lusófono e a presença das Comunidades lusófonas na região.

O que é atualmente o Departamento de estudos portugueses e brasileiros na Universidade de Aix-Marseille?

O nosso Departamento tem vários diplomas, tem Licenciatura e Mestrado. A Licenciatura é um diploma regional e tem à volta de 30 estudantes inscritos e temos também uma formação às opções de língua – quer dizer que formamos estudantes de outras áreas que se querem iniciar ao português. Mas o nosso ponto forte atualmente é o Mestrado. É um Mestrado que praticamente, desde 2018, ano em que foi criado, tem duplicado todos os anos. Estamos atualmente com 24 inscritos. O Mestrado de Português tem mais inscritos do que o Mestrado de Espanhol! A procura deve-se às escolhas de orientação que temos vindo a fazer há 10 anos, isto é, a profissionalização do Mestrado com engenharia de viagem: a aplicação dos saberes a uma prática turística e que de facto nos permite hoje de integrar praticamente a 100% os estudantes formados.

No fundo, o Departamento associa o ensino da língua a uma outra disciplina…

O Departamento decidiu efetivamente formar-se numa dupla disciplina, que é o português associado à disciplina do turismo. Somos os mais especializados na Universidade e mesmo na região, e em português somos os únicos em França. Com essa especialização que temos no turismo, nós criámos diplomas paralelos e que acolhem hoje estudantes de outras áreas.

Que tipo de diplomas?

Criámos, no ano passado, o Diploma superior de viagem que se destina a estudantes já formados, com Mestrado e/ou Doutoramento, e depois vêm formar-se em Engenharia de viagem. A primeira promoção teve uma integração imediata no mercado do trabalho, após o estágio. Na realidade a nossa região é a segunda maior região turística do mundo, mas também temos estudantes que foram para outras regiões. A segunda promoção está atualmente em formação, mas pensamos que vai ser, muito provavelmente, um dos pontos fortes do português no futuro. Outras Universidades certamente estão a fazer a mesma escolha, com os pontos fortes nas regiões respetivas. Há regiões mais industriais, regiões mais turísticas, mas não poderá no futuro haver ensino da língua pura – mesmo para as profissões do ensino – isso já pertence ao passado.

Isso implica uma reflexão acerca da aplicação dos saberes, não é?

Sim, claro. Aliás é um pedido do Ministério. Os saberes têm de ter uma aplicação prática. Ao mesmo tempo demonstra um certo perigo, porque as ciências humanas são, por essência, saberes, não é? Mas, de facto, nós temos estudantes que querem saber para que é que estudam. Acho que quando eles não têm a certeza da finalidade, isso põe mais problemas, portanto em português eu acho que uma das razões pelas quais o número de estudantes tem aumentado, é realmente que eles já entram com uma orientação. Na realidade eles já sabem que a orientação vai ser essa e não outra. Claro que temos de ter em conta todas as limitações dos Departamentos de Português em França, quer dizer com um número cada vez mais limitado de professores titulares – isso é uma tendência nacional.

Que apoio este Departamento tem dos países lusófonos?

Nós temos o apoio de instituições portuguesas como o Instituto Camões, que é fundamental. Trata-se dos 50 anos da criação do Departamento, mas também dos 50 anos da nossa colaboração com as instituições portuguesas. Gostaríamos que o Brasil aderisse de maneira mais ativa e talvez outros países, como Angola, por que não? Porque nós temos cada vez mais estudantes vindos da área africana e nós formamos. Eles são a futura elite de manhã, portanto é normal que haja uma colaboração dos países lusófonos. Angola e Moçambique interessam-nos imenso, Cabo Verde também, porque Cabo Verde tem um potencial turístico enorme. A formação de quadros é importante para nós, só que para isso precisamos, de facto, do apoio de autoridades políticas, autoridades consulares e também um nítido apoio à docência, porque em França é muito complicado privatizar cursos. Sem a privatização de cursos, há sempre o problema do financiamento. Esta questão está a ser vista em França – não a privatização, mas do aumento da Propina – mas não foi ainda decidida pelo Governo. As Propinas em França são infinitamente mais baratas do que noutros países, como Portugal. Precisamos desse apoio para também, quanto mais não seja, que os nossos estudantes possam ter condições de trabalho e para podermos recrutar formadores, etc. Todo este aspeto vai ter de ser pensado no futuro.