Uma Carta da Guerra tirada do anonimato

O dia 11 de novembro é a data que ficou na história como sendo o dia da assinatura do Armistício da pimeira Guerra Mundial: 11 de novembro de 1918.

Outros acontecimentos históricos marcaram este dia: é disso exemplo o 11 de novembro de 1975, data em que, após 14 anos de guerrilha, Angola se tornou independente.

Vamos avançando pelo século XXI. Há uma correria às novas tecnologias, comunicar é fácil, rápido e os meios múltiplos. Há uma banalização da mensagem, do que se escreve.

O LusoJornal decidiu publicar esta carta escrita já lá vão 49 anos por um dos leitores (José Couto Alves Grenha) enquanto estava no Ultramar, como se dizia na altura. Uma carta escrita como muitas que nunca foram enviadas ao destinatário. Mas qual destinatário? Uma carta que foi guardada em segredo, uma carta não censurada, evidentemente, uma carta que sai hoje do anonimato.

 

A Carta (algures em Angola)

 

Costuma-se dizer que nós somos duas vezes crianças. A nossa experiência ensinou-nos porém que em certas circunstâncias é difícil manter por muito tempo uma personalidade adulta voltando-se a ser criança muitas vezes.

Isso acontece frequentemente com os nossos soldados. Esses homens duros, que penetram no mato de armas aperradas e dentes cerrados, cujos sentidos treinados, reagem ao mais pequeno ruido da selva.

São crianças frágeis quando se reunem no largo da parada para assistirem à distribuição do correio acabado de chegar. A maior parte das pessoas não pode compreender o significado que tem uma carta para o combatente.

Para quem passa os dias metidos na floresta, o correio é como um benfeitor que traz alegria, notícias de casa, dos pais, da mulher, dos filhos…

Ávidos, os olhos percorrem aquelas linhas, por vezes tão poucas, à semelhança da alegria com que as crianças apreciam um binquedo novo. Elas representam para o soldado uma vida, que lá na terra espera por eles. E a sementeira que este ano está mais verdejante, é o pai que comprou um trator novo para amanhar os campos, é a noiva que bordou mais um lençol com o nome dele e que espera anciosamente o dia em que possa estreá-lo.

A carta de casa é para o militar, apoio moral, que a par da fé inquebrandável de quem sabe por que luta, o ajuda a manter-se firme no seu posto. A carta é amizade, é amor, é vida palpitante que vem escrita naquelas linhas que são lidas e relidas incansavelmente até à próxima carta…

A hora da chegada do correio, à tarde, notava-se, como sempre, uma certa anciedade naquele punhado de homens.

Alguns tinham-se esmerado no escanhoar da barba, como se a noiva viesse dentro da missiva que esperavam. Estavam juntos, apertados, muito próximos do Furriel, que, sentado na cabine de uma camioneta, ía lendo rotineiramente (já encontrara a carta dele) os nomes escritos no endereço.

O silêncio profundo, quase religioso, que cada homem impunha a si próprio, apenas era cortado por um jubiloso: Pronto, pronto… sou eu!

O molho das cartas diminuia pouco a pouco e à medida que o correio ía sendo entregue, os homens dispersavam procurando cada qual, um canto isolado onde pudessem saborear a sós, aquelas palavras todas… notícias que falavam de casa.

Havia expressões risonhas, outras tristes, fechadas num mutismo indecifrável… Havia por vezes festa na terra e ele não podia estar presente. Era o casamento do irmão… festa rija, e ele metido no mato sem poder assistir.

E a última carta foi entregue… muitos foram os que não tiveram correio naquele dia.

A Maria não me escreve. Ela não sabe como eu gosto de receber carta dela. Ou talvez esteja zangada comigo… Então aqueles rostos que antes eram infantis, esperançosos, voltaram a endurecer… os olhos fixados no além… ausentes.

Ao meu lado estava o Santos, um soldado que agarrado a uma folha de papel toscadamente escrita, mais parecia beber as letras do que lê-las. O Comandante da companhia passou por nós, fumegando o seu cachimbo, e ao ver o rapaz tão interessado perguntou-lhe: «então Santos, boas notícias de casa?!»

O soldado titubiou como quem desperta de um sonho, fez um desajeitado sentido pondo-se rapidamente de pé e respondeu-lhe: «as melhores meu Capitão, já nasceu a miúda. Minha mulher estava à espera de uma criança quando eu vim embora… e até que enfim chegou!» Disse-o com um tom de imenso orgulho, esfumando o peito cabeludo como que para dar mais solenidade à sua afirmação.

Os olhos brilhavam-lhe de contentamento. Tinha enfim o piolho que tanto desejava, pena era que não o tivesse visto nascer… paciência, um dia destes já lhe poderia dar um beijo…

A tarde declinava, cedendo lugar ao crepusculo da selva, que semeava a terra de sombras estranhas, como num conto de fantasmas e criaturas aladas.

Ao jantar, notei que o Santos, enquanto comia, tinha uma expressão triste, talvez preocupado… acerquei-me dele: «os meus parabéns… Aborrecido, homem? Não me digas que não estás contente por seres pai?!»

O Santos coçou a cabeça, olhou par mim piscando os olhitos redondos e muito negros… e confidenciou-se: «sabes, estou preocupado… não sei que nome hei-de por à garota…»

 

Toto, Angola, julho de 1968

José Couto Alves Grenha