Opinião: E se tomássemos um café?

[pro_ad_display_adzone id=”41082″]

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança…” cantava Luiz Vaz de Camões, poeta do Reino de Portugal Renascentista. E depois de Camões, a sociedade já deu mil voltas, as relações humanas não cessam de alterar os códigos de conduta ao longo dos séculos, até a este milénio de mudanças brutais, velozes, às quais temos tantas vezes dificuldade em adaptar-nos.

Para compreender o presente, construir o futuro, temos que conhecer o passado. Saber o que perdemos e o que ganhamos e o que ainda está por conquistar.

As relações humanas têm códigos complexos, estruturados pela política, religião mas também pelo meio económico, social e profissional. As relações sentimentais ou de amizade não se traçam com a simplicidade duma linha num papel branco, de um cruzar de olhares entre duas pessoas em mesas diferentes dum café. Desde a escola primária, e os primeiros colegas e amigos, que alguns pais selecionam em função do estatuto familiar e social, a vida simples, sem regras, onde as crianças brincam juntas e sem barreiras nem tabus é limitada a certas classes.

Mas, ultrapassando a barreira da classe média endinheirada para a alta, a competição pelas “boas amizades”, “contatos” e laços de compromisso começa muito cedo.

“Os Homens nascem todos iguais”, mas uns em palácios e outros em palheiros, isso marcará o início de vida de cada um e que cabe a cada ser humano lutar por um lugar diferente daquele que o nascimento o destinou, se assim lhe aprouver. O meio onde nascemos é um ponto de partida que pode ser uma chance ou uma fatalidade contra a qual lutaremos ou nos poderá esmagar sob o peso das conveniências.

A mulher e o estatuto desta, foram sempre um ponto fulcral destes jogos de sociedade pelo “peso” que esta carrega: o de ser mãe. O pai semeava filhos pelo mundo, que descartava com um aceno de mão ligeira se essa paternidade não lhe convinha. A mãe carregava para casa a criança que trazia nela como a prova de “um erro”, “um pecado”, “um passo em falso”.

A maternidade, continua a ser uma força ambígua na vida da mulher: fonte de vida e de estigma social pelas regras impostas: se a mãe é solteira ou casada, se o filho é de um príncipe ou de um bandido, se é do padre, ou de um homem casado com outra, todas estas questões sociais virão pesar sobre a liberdade e destino da mulher, no meio onde evolui.

As meninas foram, ao longo dos séculos, uma peça essencial da família, usadas para ascender socialmente e reprimidas para não “trazer a vergonha para a família”. Os rapazes podem, pois, frequentar casas de prostituição sem que nenhuma responsabilidade os atormente, senão os riscos de doenças venéreas, já as raparigas ditas “de família” não poderão nunca frequentar meios mal-afamados sem que isso não venha a ter consequências graves nas escolhas de futuro, sentimentais e profissionais.

No final de um milênio e início deste, as regras sociais inerentes a esta questão já tinham começado a abrandar a ditadura social e familiar sobre a condição feminina, as sucessivas lutas feministas, as leis que as mudanças de política e época trouxeram uma condição mais digna para a mulher, uma igualdade de direitos. Mas a complexidade das relações foi-se adaptando às mudanças dos tempos e da sociedade embora o aparecimento das redes sociais tenha falseado o jogo, como um bug num programa informático.

Nos bailes de sábado à tarde, qualquer rapaz tinha que esperar a aprovação do irmão, da tia, da irmã mais velha para abordar a menina e perguntar “a menina dança?”, nos bailes populares tinham que passar a barreira da família que vigiava de perto as meninas. Nos bancos da universidade, sabiam que a primeira visita à casa dos pais de uma amiga poderia ser essencial para passar ou não à próxima etapa.

Hoje, as redes sociais vieram dar uma falsa ideia de democratização das relações, sobretudo aos homens. Basta questionar qualquer mulher que tenha um perfil numa rede social, que praticamente todas foram vítimas de abordagens grosseiras, sexualmente explícitas e sem que o cavalheiro tenha tido o mínimo de delicadeza na abordagem, de se apresentar, de saber quem se encontra do outro lado. Todas as barreiras sociais, regras seculares, o mínimo de bom senso, caíram por terra.

No gira discos da casa, uma fadista a trautear uma velha antiga sobre a prudência a ter com as filhas: “Ó, ferreiro, guarda a filha, não a ponhas à janela, Que anda aí um rapazinho, Que não tira os olhos dela…” e a mentalidade ainda tão atual que a menina à janela está disponível para os rapazinhos que passam na rua, atirar pedrinhas, convidar para o passeio e que se está à janela não é porque lhe assiste o direito de estar sem ser incomodada. A ideia errada de que esta tem por obrigação, de responder às solicitações dos rapazinhos que passam na rua, ou na rede. Não quero com isto dizer que já não podemos cumprimentar uma mulher, mas friso que o bom senso, educação e dignidade de homem deveria fazer-nos seguir o caminho se ela nos fecha a janela ou se continua à janela e não quer conversa connosco. Que não há necessidade nenhuma do ferreiro guardar a filha, porque a filha do ferreiro deve ter a mesma liberdade que o filho.

A menina dança? Os cartões de pedido de namoro, o chá em casa da madrinha ou das tias, a abordagem cuidadosa no baile popular, a consciência familiar ou profissional é abolida pelo sentimento de anonimato que as redes sociais trazem aos utilizadores.

Tomamos um café? O café, essa bebida amarga, que se engole de um só trago, tantas vezes queimado, tantas vezes intragável, tornou-se no mote para a partida para a aventura, é uma palavra-chave para abrir portas a novos relacionamentos. Mas tantas vezes utilizada de forma desajeitada, desapropriada, tantas vezes de má-fé, utilizando a gentileza alheia para testar terreno. Se hoje, as normas sociais que envolvem os relacionamentos parecem ter sido quebradas e democratizadas pela ligeireza de como, através das redes sociais, os homens e as mulheres se abordam mutuamente, o fundo da questão persiste, porque o café é tantas vezes acompanhado por um questionário invariavelmente social e económico: o que fazes na vida, onde moras, como, com quem, em que condições, e todas essas questões pesam na seriedade ou interesse que alguns põem nos futuros relacionamentos.

Os jovens nascidos após 2000 pertencem a uma geração em mutação, que trazem uma mudança inevitável às relações humanas, porque encontram-se herdeiros dos hábitos da geração dos pais ainda muito marcados pelos velhos códigos, que foram atropelados brutalmente pelo conceito de facilidade e de uma certa falta de tato das redes sociais.

Conseguiremos ultrapassar a técnica do famigerado convite para café, que no âmbito do desejo de relação sentimental, entra de chofre pela vida da outra pessoa sem questionar se é casada, se tem filhos, se tem disponibilidade familiar para se libertar dessas responsabilidades para tomar cafés com pretendentes? Vamos continuar nesta busca insatisfeita por uma melhor situação quando muitos já prometeram: um lar, uma casa, uma família estável à mulher que tem ao lado, mas continuam pelas redes sociais numa busca incessante por novidade, com o maior desprezo e falta de respeito por todas as promessas? E sobretudo na expectativa bacoca de que a esposa ou companheira não encontre por uma rede social outro que, que anda em caça constante de novidade, em busca de aventura, lhe entre porta adentro, e desfaça aquele equilíbrio instável que tinham, por “lar, doce lar”?

Dizem-me que faço parte de uma geração extremamente púdica, sem sentido de humor, que passamos da geração de 68 dos nossos avós, livres e libertários para uma geração de “choninhas” agarrados ao conceito da família e do lar. Que se constata na minha geração um retrocesso nos direitos, liberdades e forma de estar na vida. Mas analisando bem a questão, talvez seja apenas um questionamento sobre onde levou essa liberdade, se ela nos convém ou não, se as nossas filhas, esposas e irmãs merecem levar, eternamente com o peso da responsabilidade: da maternidade envergonhada que até aos anos oitenta era um estigma se fossem solteiras, se devem continuar a ser exploradas na pobreza económica por homens endinheirados que pagam por um serviço sexual, se devem continuar a ser presas potenciais para sexo barato ou gratuito. Se não devemos e podemos aspirar a um convite para um café, que nos leve para horizontes menos amargos que essa bebida que vai esfriando na mesa do café enquanto sujeitamos a pessoa que temos pela frente a um interrogatório triste, banal, que poderá ser finalizado por um “vamos falando”, para ir à lista de pretendentes procurar outra porque esta, não está à altura das expectativas.

Quem somos e o que procuramos finalmente? Seremos também elementos de uma mudança feliz na sociedade ou continuaremos a usar o elemento feminino como um elemento menor na sociedade?

Será que “O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E enfim converte em choro o doce canto”?

Tomamos um café?

[pro_ad_display_adzone id=”46664″]