Opinião: Mas quem somos nós, afinal?

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As palavras não servem apenas para designar algo, constroem categorias a partir das quais vemos o mundo. Os discursos não são neutros. Têm repercussões sociais e suscitam formas de pensar e de sentir. Por isso é que os diversos modos de nos referimos às populações de origem portuguesa a residir no estrangeiro deixam transparecer um conjunto de representações. Por exemplo, certas pessoas evitam o termo “emigrante”, por considerarem que o seu uso corrente lhe terá conferido um sentido demasiado pejorativo.

A Associação Internacional dos Lusodescendentes (AILD) organiza esta terça-feira 20 de outubro, em Lisboa, um colóquio intitulado “Pare de dizer Diáspora”.

De acordo com a referida associação, “se queremos defender a Portugalidade, temos de abandonar o termo ‘Diáspora’ no nosso discurso, é um contrassenso”, dado que “essa palavra tem uma conotação claramente negativa aos ouvidos dos próprios lusodescendentes”. Debates de natureza lexical são meritórios, na medida em que nos ajudam a refletir e, eventualmente, a agir sobre a realidade.

Não deixa, porém, de ser curioso que os termos “portugalidade” – invocado no comunicado de imprensa – e “lusodescendente” – que designa a referida associação – também sejam sujeitos a escrutínio.

Como recorda Vítor Pereira (Le Monde Diplomatique, 1995), o conceito de “portugalidade” é luso-cêntrico. Sugere que “todos os Portugueses são iguais, qualquer que seja o país onde vivem, como se eles não fossem influenciados pelas lógicas sociais, políticas e culturais dos lugares (país, região, cidade, bairro) onde se instalaram”. Ora, bem sabemos que sentir-se Português não é bem a mesma coisa consoante se viva em Lisboa, Guarda, Paris, Newark ou Melbourne, para falar apenas do lugar de residência.

O mesmo se diga da noção de “lusodescendência”, usada por António Sérgio em 1938 com um sentido diferente, reapropriada pelo Estado Novo e ressuscitada no pós-25 de Abril. O termo reduz a identidade de todos aqueles que nasceram no estrangeiro a partir da segunda geração à sua origem portuguesa, ocultando o conjunto de todas as outras afiliações sociais e territoriais. Por outro lado, induz uma escala hierárquica entre os Portugueses mais próximo de uma suposta pureza étnica e os lusodescendentes que, não sendo totalmente “lusos”, são incitados a perpetuar a identidade nacional original.

No Estado Novo, privilegiava-se os termos “emigrante” e “colónias portuguesas”, que evolui para “comunidades portuguesas” nos anos 1960 e se converte, depois de 1974, em “sucedâneo psicológico” (Rocha-Trindade) da queda do Império. Na verdade, do ponto de vista dos países de acolhimento, a noção de “Comunidades” remete para uma conceção negativa de populações fechadas em si mesmas. A partir do país de origem, constitui uma forma de afirmar a presença portuguesa no mundo e incentivar a fidelidade às origens. Uma vez mais, define-se quem vive no exterior exclusivamente em função das aspirações das elites nacionais.

Se percorrermos os discursos oficiais dos anos 1980-90, encontramos uma terminologia mais diversificada na formulação, mas quase unívoca no sentido: nação populacional, mundo de cultura lusitana, nação de comunidades, portugalidade, Pátria-Mãe, prolongamento do país, modo português de estar no mundo, gente lusitana, lusodescendentes, comunidades de raiz lusitana, núcleos lusitanos, Portugueses residentes no estrangeiro, comunidades portuguesas, pátria de comunidades, mundo universal português, espaço cultural português ou pátria lusitana, entre outros.

O termo “diáspora” – agora na mira da AILD – também não escapa à polémica. O leitor mais interessado poderá, por exemplo, ler o Que sais-je? de Stéphane Dufoix (Les diasporas, 2013) para verificar que os autores estão longe de estar de acordo quer sobre o significado do conceito, quer sobre as populações a que se refere. Não é líquido que os Portugueses constituam verdadeiramente uma diáspora. Tais controvérsias comprovam a necessidade de refletirmos na forma como queremos designar as populações portuguesas que, há séculos, integram os fluxos migratórios.

O risco está em querer impor uma noção (lusodescendência) em detrimento de outra (diáspora), não assumindo que ambas têm um forte cariz ideológico.

O termo “lusodescendente” acomoda-se melhor a uma lógica política gizada a partir do Terreiro do Paço e à retórica dos Portugueses de sucesso. Pessoalmente, prefiro – quer a título científico, quer pessoal – a palavra “emigrante”, embora use os conceitos em função dos contextos.

Nasci em Clermont-Ferrand. Com 11 anos, emigrei para Paredes de Coura. Aos 24 anos, instalei-me em Paris para prosseguir estudos universitários. Hoje leciono em Braga e continuo a residir em Paris. Confesso que quando me perguntam o que sou, tenho dificuldade em responder. Os percursos são plurais. Os conceitos são uma aproximação que nos ajuda a ler a realidade, desde que não os encerremos em compartimentos ideológicos demasiado estanques.

 

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