Opinião: Os afetos não curam a miséria e a negação de gravidez

Caras amigas e amigos,

Começo já por dizer que a miséria não se cura com afetos. Quando os meus filhos eram pequeninos e se aleijavam eu dava-lhes um “bisou magique”, um beijinho mágico. E eles gostavam desse “bisou magique” e acredito que esse carinho ajudasse a consolar e a desviar a atenção daquele momento, acalmando-os.

Mas, como é óbvio, o “bisou magique” não chegava, dependendo do problema era necessário um verdadeiro curativo.

Ora, há alguns dias um recém-nascido foi encontrado num ecoponto em Lisboa, tinha sido abandonado ainda com o cordão umbilical. Quem o encontrou foi um sem-abrigo que depois teve a honra de ser recetor dos afetos do Presidente da República.

Mais tarde, encontrou-se a progenitora do bebé, uma rapariga de 22 anos que também é sem-abrigo e que também foi recetora dos afetos à distância do nosso Presidente, que pediu compreensão para este caso porque a Sara deve ter tido “uma razão muito forte” para o seu gesto.

Ora isto não resolve a situação, nós estamos face a verdadeiros casos de miséria extrema. O Senhor herói que salvou a criança, voltou ou não para a rua? E todos os outros? E a Sara, na rua há um ano, sujeita a todas as violências que conhecemos e que são acrescidas de violências sexuais por a Sara ser uma sem-abrigo mulher e pelos vistos também foi vítima de prostituição.

Tantos artigos, tantos comentários sobre o caso sem se saber a condição psicológica desta rapariga. A criança é fruto de que tipo de relação? De uma violência sexual? E teria a Sara consciência de estar grávida, não vi menção em Portugal sobre este fenómeno bem estudado em França que é a negação de gravidez, mulheres que por várias razões, uma delas é saberem não ter condições para criar uma criança, encontram-se em estado de negação. Em estado de desautorização de poderem ser mães e descobrem, então, só no momento do parto que vão ter um filho. E isto consiste é um enorme choque psicológico. Algumas mulheres pensam que o bebé está morto ou não o reconhecem como sendo um ser vivo e abandonam-no ou matam-no.

Todas a minhas caras amigas ouvintes que já tiveram filhos como eu podem facilmente atestar do quanto o parto é um momento limite para o corpo e para a mente, mesmo com todos os cuidados do mundo. Nem quero imaginar o que será para uma jovem neste estado de vulnerabilidade social ter uma criança assim sozinha na rua.

O companheiro recente que tinha e que não é o pai, declarou não ter reparado que a Sara estivesse grávida, os outros sem-abrigo que a conheciam também não. Em caso de negação de gravidez a própria não sabe que está grávida, mas as pessoas que estão à volta também não, porque a barriga quase não cresce, não existem mudanças físicas visíveis como numa grávida consciente do seu estado.

Ora, eu não acho bem que um bebé seja posto em situação de perigo e a lei é feita para ser universal e por isso a Sara deverá responder do seu ato, mas existe aqui toda uma série de atenuantes para o seu caso que têm de ser levadas em conta tanto na lei como no julgamento da opinião pública, tão célere a atirar pedras sem se perguntarem, mas como chegámos aqui?

 

Luísa Semedo é filósofa e membro do Conselho das Comunidades Portuguesas. Esta crónica na rádio Alfa, às quartas-feiras, tem difusão uns minutos antes das 7h00, 9h00, 11h00, 15h00, 17h00 e 19h00.

 

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