Passaram a fronteira a salto: “Andámos a pé e pelos montes, durante três dias e três noites…”

[pro_ad_display_adzone id=”46664″]

 

Decorria o lindo mês de maio, já lá na aldeia, o mês de Maria era celebrado e todos os dias à noite, as mulheres e as raparigas da aldeia reuniam-se para recitarem o Terço em honra de Nossa Senhora de Fátima, na igreja paroquial.

Naquele dia, a Rosa Maria e a Conceição, não tinham aparecido e algumas mulheres do grupo ficaram inquietas, pois não era habitual elas faltarem ao Terço, e ainda mais a novena tinha sido começada por elas, a levavam-na muito a sério.

Mas a razão era simples, os maridos destas duas jovens mulheres estavam de partida para a França. Pela calada da noite partiriam no táxi do Sr. Isidro.

Naquelas casas pobres e simples, dois casais preparavam-se para uma separação mais que forçada, pois a vida estava muito difícil e não se previam melhorias. Os homens partiam à procura de melhores dias.

Maria olhava de lado o seu José que tinha como marido há 5 anos e lhe tinha posto um filho nos braços. Deixava-os com a promessa de bem depressa os ir buscar e de novo se reunirem. O seu coração apertava-se, cheio de medo e de dor, à medida que a hora da separação se aproximava.

Em casa de Conceição, Manuel acabava de fechar a mala com o aloquete que tinha comprado na feira e cuidadosamente guardava a chave no bolso do casaco que tinha vestido para a viagem. A mulher chorava, escondendo a cara no grande lenço bordado onde abafava as palavras que ia dizendo, e que traduziam pena e tristeza.

“Oh Manuel, vais partir e não sei quando te verei de novo”. A voz era entrecortada de soluços. A dor da separação era grande. Algumas palavras e olhares cheios de carinho que Manuel lhe dava, nada faziam para que fosse menos penosa esta separação.

Manuel olhou pela janela e lá no fundo da rua pensou ver o José de mala na mão que subia a calçada de passo apressado. “Já lá vem o José… temos que ir”, anuncia à mulher. Trocaram um último abraço e um último beijo, na intimidade da casa. Um beijo cheio de promessas, porque uma nova vida para os dois ia começar… com esta separação.

José bateu à porta e ao entrar anunciou que o tio Isidro não iria demorar, pois era pontual e tinham combinado para as 7 da manhã. Estaria ali dentro de 5 minutos.

Conceição tinha deixado de chorar e pensava agora na sorte da vizinha que via partir o marido, mas ficava com o filho nos braços. Não o mostrava, mas com certeza que sofria ainda mais.

“Oh Conceição… faz cá companhia à Rosa enquanto nós vamos ver se arranjamos vida lá por fora”. José tinha prometido à Rosa que depressa, se tudo corresse bem, viria buscá-la, se Deus o ajudasse. Na mente destes dois homens existia um forte desejo de estarem separados das mulheres respetivas o menos tempo possível.

Ouviu-se o velho Peugeot parar em frente da porta de Manuel e dele sair o Sr. Isidro. Manuel abriu a porta de casa para o deixar entrar, estava preocupado e disse-lhes:

“Rapazes, temos que ir andando pela calada da noite pois os Chiquinhos disseram-me que a ‘Pevide’ andava por ai”. Os dois olharam-se, Conceição recomeçou a chorar. Um daqueles choros silenciosos, mas as lágrimas inundavam-lhe o rosto, dando-lhe uma imagem quase angélica, que Manuel levava na sua mente dolorida.

Pegaram nas malas e sacos de merenda, desceram do balcão, carregaram tudo no porta bagagens do carro e entram para os bancos traseiros, depois de se terem despedido de Conceição que não parava de chorar. Um último abraço e Manuel entrou no carro que numa aceleração arranca barreira acima, deixando uma nuvem de pó como vestígio da passagem apressada.

Tinha sido combinado que, se alguma coisa suspeita aparecesse, eles se deitariam e se cobririam com as mantas que já ali se encontravam para esse efeito.

O carro rolou assim quase sem darem uma palavra, tanto era o medo como a grande dor da separação. Mas por enquanto nada tinha acontecido de anormal.

“Já estamos perto de Vilar Formoso. Já falta pouco” desabafava o tio Isidro. Mas o que ele dizia, fazia aumentar ainda mais o medo dos dois homens pois era por estas paragens que por vezes as coisas se passavam mal.

Ao sair de uma curva, em frente deles, alguém com um foco forte fazia sinais de paragem e um sinal de stop estava no meio da estrada. “Ai os filhos da p… cá estão eles… deixai-os comigo”. O tio Isidro estacionou o carro na berma da estrada e abriu o vidro esperando o homem que, vestido à civil, se dirigia para eles.

“Boa noite, então para onde é a viagem?” perguntou com voz forte e de comando, ao mesmo tempo que ia iluminando o interior do carro onde se encontrava Manuel e José.

“Vou ali com estes amigos até Vilar… beber uns copos… não há mal nisso” responde com um sorriso o tio Isidro. O homem pediu para abrir o porta bagagens do carro e o tio Isidro sobressaltou, mas fez por disfarçar. Saiu do carro e tentou ver se o homem estava sozinho ou acompanhado. Viu mais dois vultos na sombra da noite e pensou que estavam nas mãos de uma patrulha da PIDE. “Que pouca sorte a nossa…” pensou.

Abriu o porta bagagem do carro, o homem lançou o feixe luminoso para o interior onde descobriu as malas e os sacos. “Vocês até para irem beber uns copos vão de malas aviadas!”.

Olharam um para o outro. A surpresa de um e o medo do outro, fizeram com que nada se passou e nada se disse… nada. O tio Isidro fechou o carro e frente a frente, esperava a reação do polícia. Este virou-lhe as costas e seguiu em direção dos colegas na sombra da noite.

“Então podemos seguir? Não é preciso mais nada?” perguntou a medo o tio Isidro. “Podem seguir, está tudo bem… podem seguir” respondeu uma outra voz desconhecida.

Eles não deviam ser aqueles por quem esperavam. “Podem seguir, não é preciso mais nada” voltaram a repetir com tom mais nervoso.

Isidro não esperou por mais respostas, entrou no carro e, nervoso, lançou-o novamente na direção de Vilar Formoso.

Durante alguns minutos o silencio foi total dentro do carro. Não havia nada para dizer, a não ser que queriam afastar-se daquele lugar o mais rápido possível.

“De certeza que éramos caça pequena para eles, para nos terem deixado seguir!” tentava explicar o tio Isidro.

Conduzia agora com mais velocidade, mas sereno, pois agora o caminho estava aberto até à fronteira.

No cimo da reta, como por encanto, aparece a iluminação pública de Vilar Formoso.

“Bom, agora vocês esperam aqui. O Sanchez… o meu amigo espanhol não vai tardar. Eu já lhe disse onde é que vocês estão à espera dele”. O tio Isidro explicou como ia decorrer a passagem a salto da fronteira, conduzidos pelo seu sócio e amigo passador Sanchez.

Despediram-se com algumas recomendações, uns abraços e apertos de mão. Ficam ali esperando pelo passador espanhol, sentados num café um pouco escondido, já com um cheiro a cozinhados. Era quase meio-dia. A merenda estava no saco, mas se comessem comida quente não seria má ideia. Quem sabe quando isso poderia voltar a acontecer?

Passaram 3 horas. Bem almoçados, comidos e bebidos, continuavam à espera do passador, mas agora com uma certa desconfiança. “Mas que raio é feito do homem? Devia ter vindo logo de seguida…”

Mas lá apareceu o senõr Sanchez, que os reconheceu e veio saudá-los. “Buenos dias senhores… me llamo Sanhez. Venho a buscarlos”. Trocaram algumas palavras, pegaram nas malas e dirigiram-se para o carro particular que estava do outro lado da rua.

Combinaram a maneira como seria passada a fronteira. Viajaram de carro por uma estrada poeirenta, durante uma meia hora e no meio de um sobreiro, pararam. “Aqui à frente, por este caminho, vós outros ides encontrar a estrada nacional… Yo vou dar a volta e depois vos pego ali. A frontera quase que la passamos” diz com um sorriso.

Assim fizeram. Seguiram pelo caminho de terra, o sol de maio já aquecia bem e o cheiro das flores do campo inibriavam os sentidos. Manuel e José sorriam pisando já terras de Espanha.

De vez em quando, os olhares destes dois homens dirigiam-se para o caminho percorrido e o coração apertava ainda mais, a saudade já ganhava espaço à medida que avançavam.

Chegaram ao fim do caminho de terra e lá estava a estrada nacional que descia neste vale em direção a Salamanca. Era a famosa N620.

Como combinado, esperaram pelo Sr. Sanchez. Sentaram-se à sombra de uma azinheira e iam vendo passar os camiões carregados de mercadorias, nesta azáfama dos transportes terrestres.

Já eram cerca das 6 horas da tarde e o sol descia lá no horizonte. O Sr. Sanchez não aparecia. Foi tempo de merendarem. Estavam já com a quase certeza que o homem se tinha esquecido deles e no mês de maio as noites ainda eram frias.

Anunciavam-se momentos de solidão e de abandono. Decidiram caminhar ao longo da estrada em direção de Salamanca e aí tomariam o comboio. Foi com essa esperança que começaram a caminhada, deixando para trás o clarão da iluminação pública de Vilar Formoso.

Só muito mais tarde é que souberam, pelo tio Isidro, que o passador espanhol tinha sido preso quando carregava outros passageiros com o mesmo destino deles e por isso faltou ao encontro.

No silêncio da noite que não queriam perturbar e iluminados pelo luar, palmilharam os primeiros quilómetros e foi já muito mais tarde que decidiram parar. Atrás do muro que seguia ao longo do caminho, que estava em paralelo com a estrada nacional, decidiram pernoitar. O peso das malas e dos sacos tinha tomado conta das energias dos seus corpos. Rapidamente o sono se apoderou de Manuel e José.

Continuaram a caminhar por mais de 100 quilómetros, por vezes sorridentes, por vezes tristes, mas sempre caminhando ao longo desta estrada que os guiava até Salamanca. Sempre que podiam, evitavam a nacional para não serem surpreendidos pela Guardia Civil.

Caminharam a pé, carregados, durante três dias. Por montes e vales, descobriram a beleza rude destas terras do norte da Espanha. Sofreram do cansaço e também a fome veio ter com eles. A merenda não dava para tanto tempo.

Já estavam avistando Salamanca, perto de umas habitações, quando ousaram enfim fazer sinal a carro, que por sorte era um táxi. Entre português e espanhol, lá se fizeram compreender. “Queremos ir para la estaçion do comboio, do trem… se fizer o favor”.

“Arriba hombres… subam, nos vamos de seguida”. Pouco tempo depois estavam em frente da estação da Renfe. O Manuel decidiu que seria ele a comprar os bilhetes, enquanto José guardaria a bagagem naquele jardinzinho onde algumas flores começavam a desabrochar neste lindo mês de maio.

Era quase meio-dia quando Manuel apareceu com os bilhetes na mão e com um grande sorriso anunciou que a partida seria às 5 horas da tarde, em direção a S. Sebastian/Hendaye.

Compraram pão e uma garrafa de laranjada, “La Casera”, e saciaram a fome terminando com o presunto e a chouriça. Ainda passearam pela cidade, que não acharam linda, e ficaram com a ideia que, “só de passagem, mas para viver, não”.

Chegou a hora da partida, mas o comboio estava atrasado. Entretanto, encontram outros portugueses que, como eles, tentavam a aventura de procurar trabalho na Europa. Seguiam para vários destinos, França, Alemanha, Suíça e até Holanda.

Na madrugada do quarto dia, descobriam a França, St Jean de Luz e Hendaye acolhiam-nos nesta manhã cheia de sol, e com esta luminosidade, tudo parecia fácil e acolhedor.

A passagem da fronteira passou-se seguindo a procissão dos viajantes e seguindo os conselhos de outros que, como eles, queriam ir para Paris. Com a ajuda de um António, que era de Coimbra, foram comprar os bilhetes e nesse mesmo dia rumavam em direção da terra sonhada: Paris e os seus arredores.

Rapidamente fazem conhecimento com outros portugueses e a solidariedade que nesses tempos era muito forte, fez com que, ao cabo de duas semanas, já trabalhavam numa grande empresa de construção, com alojamento e tudo.

Tudo começava a correr como tinham (quase) previsto e já novos projetos nasciam na cabeça deste dois homens, aos quais a família começava a faltar. E havia uma promessa feita que tinha de ser cumprida.

“Eh pá, na língua é que eu não encarrilho lá muito bem!” dizia Manuel a José, que por seu lado encontrava as mesmas dificuldades.

Mas nesses tempos, eram tantos os trabalhadores vindos de Portugal, que bastava por vezes um olhar, para que o coração dissesse baixinho: “Este de certeza, é português, carago, não falha”. E um sorriso abria a conversa, onde se perguntava de onde era. Surgiram novas amizades e todos se ajudavam, se reconfortavam nas horas de nostalgia e de saudades.

 

[pro_ad_display_adzone id=”41082″]